terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Madrugada

Madrugada é nome de doce. Muito melhor que goiabada. A quem a prove com parcimônia,  mas são raros. Há nesse doce um tom amargo. Ansiedade vira Angústia. Solitude, solidão. O ressabiado passa a triste. Os sambas viram boleros. E a sede como aumenta.

O amargo vem de nós,  que não se culpe a madrugada. É o Romeo para a Julieta, é como o queijo curado pra goiabada. E como é bom uma madrugada com angústias meia-cura. Eles me fazem sofrer tão melhor.

Sem elas o doce enjoa. Só do azedo e do amargo das cascas raladas se faz boa compota. E que mais me rale. E que a casca se faça mais grossa. Para que o doce seja mais sentido. Para que venha a Madrugada.



M.U.C.C.

a noite da minha cidade

Quando o sol começa a se esconder as florestas tornam-se especialmente amedrontadoras. Os ruídos dos animais aumentam em frequência, volume e estridência. As cores se misturam. As árvores crescem. O céu fica mais distante. O chão fica incerto. Os caminhos menos evidentes. Sou um homem urbano porque morro de medo das noites nas florestas.

Gosto das placas azuis que dizem os nomes das ruas. Gosto dos postes iluminando as noites da minha cidade. Gosto de ouvir os barulhos de brigas de famílias. Gosto menos das músicas que saem de dentro dos carros. Me lembro da sensação confortadora de ouvir longínquos os motores de ônibus alongando marchas para depois trocá-las. É tão bonita a cor da sala quando só resta a luz do sinaleiro. Ora verde, amarelo e já vermelho. Ou a cor da televisão, muda e sem sinal, a projetar formigas na parede.

Só assim sou forte o suficiente para aceitar que um denso silêncio me oprima a alma e traga o sono. O silêncio também traz sonhos. Por vezes depois do sono e então é tarde para lembrar-me deles na manhã seguinte. Mas muitas vezes os sonhos chegam antes do sono. Desses sonhos sou escravo por dias. Tomam conta de mim por tempo demais. Tomam de mim a maior de todas as riquezas, a normalidade.


Amo a noite de minha cidade. Amo meus sonhos. Amo ainda mais os frustrados, interrompidos, não realizados e não realizáveis. São como motosserras que destroem a mata selvagem que vive dentro de mim. A pior de todas as florestas escuras é aquela da qual nunca me apartei. Só meus sonhos, e o escudo destas linhas desbravam-na. Quero sonhar nesta noite com a urbanização da minha alma.


M.U.C.C.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Eu, um guardador de carros, um velho, uma criança e Johann Sebastian Bach.

Existe um homem que guarda carros todas as noites perto da casa onde moro. Hoje quando me aproximava dele vi que tinha companhia. Era um senhor já muito velho sentado na cadeira em que o guardador normalmente está. Nunca tinha visto um velho tão velho chorando daquele jeito. Aquele choro só tinha visto entre adolescentes. Chorava com desespero e vazio, já não tinha forças para falar, quase. O velho queria se matar. Falava do filho, estava confuso, tentava chorar, balançava a cabeça, tornava a chorar. Tentei consolá-lo, eu e o guardador, sentia-me como um canastrão soltando frases que eu mesmo não podia entender e acreditar. Mais calmo se foi, talvez quisesse mesmo desabafar. Fui também.
Cheguei na academia. Halteres subiram e desceram, a esteira correu, meu corpo doeu, suou e cansou. Tive tempo para me fazer perguntas. Não as quero responder como quem responde a um empregador em uma entrevista, quero as perguntas do meu filho. Quero realmente ser capaz de fazer perguntas sem imaginar as respostas. Qual o sentido da vida? Pensei em fazer deste um texto sobre o sentido da vida, seria a minha resposta ao velho, mas não sou capaz nem de ao menos esboçar resposta. Não agora. Deixe-me com a pergunta. Não me venha com frases prontas, peça ao Hamlet para falar mais baixo porque está me atrapalhando. Não responda está pergunta como quem está diante de um quiz.
Não há sentido, disse um amigo de Zaratustra, ignorando que ele era solitário e não tinha amigos. Cada um deve construir a sua ponte sobre o rio da vida, não há sentido e assim devemos construir um sentido próprio para ela. Parece-me porém, que o rio é por demais largo para nossa vã engenharia. Teria Zaratustra se esquecido de anunciar sua própria morte? Ainda que morte lenta e degenerativa está era a morte que o velho anunciava. Era dele e nossa.
Vim me consolar com Bach. Horas antes tinha perdido bom tempo ouvindo-o ao computador. Pude me consolar enternecido pelas cordas de seus cravos, violinos e violas. Não posso me esconder de mim ouvindo Bach. Nunca mais fui o mesmo depois de ouvir a famosa ária número 3. Bach me faz amar a vida. Amar não as fantasias de conquista e sucesso que nos levam a chorar o choro do velho, mas amar estar vivo. Bach me faz pensar que para além de todo relativismo estético há beleza. Há sentido.
Me consolei também no sorriso do meu filho. Cada vez que o vejo sorrir penso como sou incapaz de sorrir como ele. Desejo que ele seja muito feliz enquanto pode. Vira o tempo em que sorrir será quase um esforço. De todas as muitas perguntas que me faz, jamais me perguntou sobre o sentido da vida. Penso que ele só pergunta do que não lhe parece evidente. Quem se faz essas perguntas, sinto informar, já começou a morrer. Talvez por isso é que a eternidade é para os que são como crianças.

M.U.C.C.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Marcos: o projeto.

Quero morrer para mim como projeto. Uma das minhas brincadeiras prediletas quando pequeno era me imaginar mais velho. Passava horas vivendo situações futuras, tive várias profissões, viajei, fui campeão em olimpíadas e mundiais, me casei com a menina da classe e tivemos filhos. Eu era como um personagem de um romance ainda não escrito. Gostava de pensar como diferentes opções me levariam para cenários específicos e como ao mudar as escolhas mudaria também o desfecho.
Talvez nunca tenha parado com essa brincadeira. Eu quase sempre me vejo como um personagem do futuro, eu sempre serei, ou estarei, ou realizarei. Ao longo dos anos as coisas vieram a ser e estar e não deixaram de ser realizadas, mas eu acabo fazendo tudo como quem come a ceia pensando na sobremesa. Vou vivendo como quem espera. Devemos sonhar? Planejar e desejar sermos mais e melhor? Talvez sim, mas há um perigo.
Bem antes do castigo de minha mãe eu já sabia que devia ser castigado, podia até tentar escapar ao castigo, mas no fundo sabia que ele era meu. Há algo em nós que nos auto-avalia constantemente, que nos julga e nos faz ter sentimentos importantes como culpa e arrependimento, justiça e compaixão. A questão porém não é quem é este que me julga dentro de mim mesmo, mas quem ele está julgando? Criamos uma imagem própria e sobre ela emitimos juízos.
O perigo mora aí. Não posso julgar meus atos de hoje pensando no Marcos de amanhã. Não posso julgar os atos de meu grupo pensando no que ele será. Os meus fins não podem justificar meus meios, se me permitem o clichê retrô. Portanto preciso urgentemente me reconciliar com meu eu verdadeiro, que morra o Marcos-projeto, que eu seja só eu mesmo para mim. E você?


M.U.C.C.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O sal da saudade

trago um gole amargo de ar
talvez de mar
talvez não amargo, mas salgado
salgado de saudade
palavra lusitana
lembrança quase má,
quase insana
saudade dos marinheiros perdidos
saudades de camões
e de índias deixadas pra sempre.





M.U.C.C.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O meu milagre da multiplicação

De tudo o que eu já estudei sobre educação, de todas as aulas de tantos historiadores, pedagogos, historiadores da pedagogia, psicopedagogos e sociólogos e sociólogos da pedagogia e todas as outras possíveis combinações entre essas palavras, restou-me a seguinte frase, não existe ensino, existe aprendizagem.
De todos os alunos que eu tive os que melhor aprenderem o que eu lhes falava, os que melhor souberam usar os conceitos, reconstruir narrativas históricas, analisar conjunturas, julgar situações-problema, me deixaram sempre com a sensação de que aprendiam sozinhos. Não que eu não tenha contribuído, mas porque talvez nada se possa ensinar verdadeiramente. Para dizer que alguém aprendeu algo é preciso que ele tome esse conhecimento das mãos de seu professor, é preciso que em algum instante aconteça um milagre, uma epifania, a tradição filosófica chamaria de intuição intelectual. Descartes dizia que essa era a assinatura divina em nossas almas.
Minha filha é uma aluna aplicada, pelo menos até agora, e faz suas tarefas com muita diligência. Muitas vezes me falta paciência e ânimo para lhe ensinar, mas ela merece toda a minha paciência e capacidade pedagógica. Hoje porém tive todas as penosas horas recompensadas ao vê-la aprender a multiplicar números, de novo não foi eu que ensinei, mas ela que olhou diferente para aqueles números em um dado momento. Dou aulas para turmas grandes, por vezes não dou conta de aprender o nome de todos os alunos, mas mesmo assim sei quando eles estão aprendendo. É sempre tão recompensador como foi com minha filha.
Há momentos dentro de uma sala de aula, em que todos param de fazer outras coisas, de falar com seus amigos, de mandar mensagens no celular e passam a olhar atentamente para o que você esta dizendo. Seus olhares mudam e parece haver uma aura diferente sobre a sala. Nessa hora minha boca se enche de palavras, há o que  Feuerstein chamaria de reciprocidade, sinto-me quase possuído por algo maior. Todo o cansaço se paga nesses momentos, minhas dúvidas sobre minha escolha profissional somem, sou feliz.
Aprender como nós humanos aprendemos, saber intuir coisas que nem as palavras dos maiores poetas podem expressar, saber o que é saudade, saber como ler um soneto, resolver um enigma, são coisas tão mágicas e tão simples. Essas são daquelas poucas coisas que chamamos de milagre.




M.U.C.C.

sábado, 5 de novembro de 2011

Vôo Livre

É raro, mas vez ou outra sinto a vida como uma grande queda-livre. O chão tira o corpo fora, não há caules ou raízes em que se possa segurar. Tudo não é mais que um tapa na cara.  Só nessas horas é que conheço a solidão, a solidão da queda-livre. Das pessoas restaram as vozes zombeteiras, me acusam, riem-se. Não levo magoa, o que mais eu queria? O que mais eu poderia chamar de liberdade? Nada mais me prende e por isso caio. Liberdade talvez seja um nome de guerra da queda. Minha alma chega a tocar o céu da boca, sinto náusea de mim mesmo. E tudo é insuportavelmente banal como a gota d'água do chuveiro, cai e explode no ralo como um sem número de outras. Não resta nem a vanglória da excepcionalidade, sou só o fruto necessário da gravidade das coisas. Pensei que seria poeta, pensei que seria um abutre negro pastando almas daninhas, mas sou só queda. Restou-me o grito destas linhas, de horror e medo ao ver-me no espelho, ao ver a queda, ao respirar o nada, ao não saber o que mais devo fazer com os pés. Só restou as palavras. Mas hoje em dia elas não valem nada.



M.U.C.C.

sábado, 29 de outubro de 2011

Distância e Proximidade

Um genocídio de formigas não fará manchetes de jornal. Nem levará gerações de historiadores a refletir sobre suas origens e consequências. Assim também a beleza de um ser não se pode conhecer verdadeiramente antes de se aproximar dele a mais ou menos um palmo. Sentimos numa relação de aproximação e afastamento. Gostar, amar, apiedar-se é chegar mais perto.

Não há situação mais clara para representar isso do que cruzar a calçada para não encontrar alguém ou para provocar o encontro. Quando era aluno, me habituava a ver meus professores à uma certa distância. Normalmente eu sentava no fundo, não por comportamento, mas por tamanho mesmo, e de lá eles tinham uma determinada proporção e suas expressões eram reinterpretadas por mim de uma certa maneira. Era muito curioso que quando eles se aproximavam para olhar a tarefa ou coisas assim eu percebia que eles não eram como eu imaginava. A textura da pele, o contorno dos olhos e as expressões mudavam muito. Eles passavam a ter outro significado depois que se aproximavam.

Assim também hoje com meus alunos, não há como estar próximo de todos , mas sempre existem aqueles que são mais corajosos, atirados, ou que pelo passar natural do tempo vamos nos tornado mais próximos. Esses deixam de ser alunos, passam a ser amigos. Gostaria de ser assim com todos, mas não há como. Entre os doze apóstolos de Jesus Pedro, Thiago e João pareciam mais próximos. E eram apenas doze. Resta-nos, ao vê-los formados, sonhar que voarão e serão felizes.

Pode ser que se desenvolva afeto por pessoas sem a menor proximidade. Mas nada que se compare a estar a um palmo de distância. Só se conhece a verdade dos grandes pintores quando podemos esquecer suas imagens e só ver as pinceladas. Só conhecemos de fato um compositor quando nos arrogamos a tarefa de tentar executá-lo. Os planos abertos são bonitos no cinema, mas o amor é sempre um close.







M.U.C.C.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Submundo



Este domingo acordei tarde e tive que almoçar sozinho. Fico pensando que os almoços não foram feitos para a solidão, quando o inventaram pensavam em pessoas que por já ter alcançado algum progresso civilizatório estariam cercados por uma família, grei, comunidade e fariam daquele momento algo mais do que nutrição pragmática. O almoço celebra a vida urbana, sedentária, comemora a cultura no sentido mais original que esta palavra pode ter.

A própria ideia de restaurante já indica que o que se fará naquele lugar é mais do que simplesmente nutrir-se, mas hoje as pessoas comem como se fossem carros em um posto de gasolina. Fui a uma lanchonete chamada Subway. Nada contra esta empresa (olha o medo do processo), que oferece produtos em qualidade superior aos seus concorrentes e que é sem dúvida útil às pessoas em seus agitados cotidianos. Mas o nome do recinto me fez pensar. Me parece que estamos escolhendo o caminho de baixo e não o caminho das coisas elevadas. Preferimos regredir em nossas relações sociais em nome de um suposto avanço tecno-cultural. Literalmente deixamos de usar os garfos e voltamos a comer com as mãos, enfiamos barbaramente a cara no sanduíche e nos digladiamos com a presa indefesa.

Se o consumo nos barbariza existem outras dimensões deste pântano. Aprendemos  a cultuar o underground sem nos darmos conta do que isso significa. Há um apreço pela marginalidade, pela autodestruição, pelo vazio moral e pela malandragem, que rejeita o que talvez haja de mais valioso em nossos padrões sociais que é o aperfeiçoamento ético-moral. De repente ficou bonitinho posar de bad e fazer caras e bocas.  Hoje o que mais ouço nas fúteis entrevistas de celebridades é a asquerosa frase: "não me arrependo de nada". E todos batem palmas! Será muito perceber que uma afirmação deste tipo ou aponta para um quadro de psicose ou para uma duplicidade moral em que se diz uma coisa e se sente outra? O mal é sempre o outro, o sistema, a PQP, mas nunca se pensa em um caminho de aperfeiçoamento próprio. Pelo contrário, orgulhosamente ostentamos nossos defeitos como medalhas, lambemos nossas feridas diante da nuvem WWW.




M.U.C.C.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Sopa de letrinhas

Procuro frases minhas em uma sopa de letrinhas qualquer. Enquanto procuro, penso que talvez seja mesmo só uma sopa.

Não tive chance de falar quando ainda planejava lhe dizer algumas coisas. Foi-se com o frescor, que levou também as brumas da manhã. Veio o sol, o girassol e a noite. Ficamos eu e o retrovisor procurando por esquinas e transversais, sempre em vão é claro. Mas se pudesse o que diria? Tudo ou nada? Só mais um Chá(t) ou um café?

Sou assim, eu e espelho. Julgando futuros, matando passados, correndo presentes. Pensei em me arrepender, o que seria a melhor coisa a fazer, sempre é, mas ainda não me dei esse luxo. Pensei, e já me dei por satisfeito.




M.U.C.C.

Olimpo




Por quem choram os deuses do olimpo?
Será que são capazes de compaixão?
Amariam eles a morte como nós amamos a vida?
Desejariam o imperfeito como nós a perfeição?
Ou seriam só deuses mesmo?





M.U.C.C.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A moça chamada Liberdade

Não sei se mancha, não sei se mata, não sei se é manha ou se é manhã, não sei.

Juro, não sei nem mesmo a cor. Se branco que intimida, se preto que esconde ou se vermelho...bem, se for vermelho basta.

Que gire, que seja, que voe!

Que a liberdade tenha um sorriso amplo de felicidade, um longo cabelo e longas tranças e baixe no corpo de uma atriz. E que ela viva todos os nossos papéis desgraçados e que os subverta em alegria e leveza.

E se manchar que manche e se borrar que borre e que venha a manhã e o novo dia.




M.U.C.C.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

penas e papel




Que meu texto seja sempre feito de angústia e estupor!

Que seja como pus que eclode da ferida,

seja a bolsa que se rompe em vida.

as classes, ordens e espécies de meu caos interior.



Que seja a língua do fogo da falta,

que seja a onda tsunâmica do vazio,

que me faça sumir em um redemoinho,

me faça trova, tambor e menino.



Que me mostre a cara da tragédia,

me leve a morar com Ciclopes e Medusas,

me deixe nú em frente ao altar,

que não me tenha dó, que não faça média.




E que nele eu  não habite em paz,

que não haja quem sabe outra vida

e que nela eu não possa mandar.

Me tire as penas, o amor e o cocar.




E que eu ainda tenha vida para quando ele ficar pronto.




M.U.C.C.




A miséria da Poesia ou a poesia da Miséria




Não mais do que poucas palavras.

Não mais que um pedaço de luz.

Não muito além de um pequeno gesto.






Como a concha que esconde o universo,

o caramujo que é feito do eterno,

a parte de um todo que abrange o infinito.






Como o amor que tem sua síntese no beijo,

o final tem seu início no silêncio,

como a dor que tem por mãe a alegria.






E porque meu peito repousa na mão de uma criança imperiosa?

E porque de opróbrio se faz sua alegria?

E porque tão poucas palavras?







E porque só de miséria se faz poesia?




M.U.C.C.



quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Fortuna.

Eu estava aqui. Exatamente no lugar onde sempre estive. Neste meu lugar em que o universo está ao alcance da minha mão, em que sei qual é a gaveta dos talheres e posso andar sem abrir os olhos.

Já tinha à esta altura me conformado com o papel de árvore nos Sonhos de Uma Noite de Verão. Já estava me enturmando com fracassos, perdas, frustações e silêncios e som de ocupado era o hit mais pedido de minha rádio.

Então veio ela, não sei se a chamo Norma ou Exceção, Sorte ou Azar, Bem ou Mal. Talvez Brisa ou Tempestade, Dourado do Sol ou Cinza de Nuvem. Pediu para que a chamasse de Fortuna. Veio trazendo outras vidas, outras cores e novos versos. Um outro cosmo brotou em meu catre, achei que a sorte sabia até meu nome.

Quem se encontra com Fortuna fica a um passo do penhasco e outro do conto de fadas. Não sabe se é um lindo unicórnio de asas abertas para a felicidade ou se é um carrossel  que te engoda sazonalmente. Já não é possível saber se é o cheiro da liberdade que sinto ou do anestésico da escravidão.

Só uma coisa sei. Que não sou páreo para Ti, Óh Fortuna!


M.U.C.C.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O Lindo Rosto da Liberdade

Se Deus nos legou alguma liberdade quem sabe seja porque nela viu algo de belo ou bom. Poderíamos pensar que se todo o universo se sujeitasse às nossas vontades viveríamos melhor, seríamos felizes. Temos a tendência de pensar que se tudo acontecesse exatamente como desejamos seríamos plenos e realizados. Essa é a tentação despótica. Essa ideia arruinou Napoleões e Robbespierres ao longo dos séculos. E o mesmo risco de ruína corremos nós se não aprendermos a amar a liberdade. Temos de deixar de vivermos como meninos mimados, nem tudo será como quero ou como gostaria e isso não é necessariamente ruim. Eu sou parte do mundo e não o contrário. Não é o caso de se entregar ao fatalismo ou a inércia, mas de sabermos saborear os gostos por vezes doces e outros amargos da liberdade. O Pai ensina, corrige, dirige, cuida, mas também chega o dia de deixar que o filho abandone o ninho e bata asas. O mestre ensina, orienta e deve sonhar com o dia em que o discípulo o superará. Há um senso estético nisso, a liberdade é bela, além de justa.


M.U.C.C.

domingo, 18 de setembro de 2011

Um pequeno livro que escrevi

Escrevi um pequeno livro. Só escrito por fora. Não tinha arte gráfica, tudo feito a mão. Por dentro deixei o peito pulsante, o sangue que ferve, o sopro da vida, deixei a paixão. Deixei também um CD, pois de músicas também é feita a alma. Lancei-o no mar como quem manda uma mensagem na garrafa, sem querer resposta, retorno ou reembolso. Lancei meu livro para a vida. E veio o tempo, as estações mudaram, e só silêncio me respondia. Cheguei a pensar que não o devia ter lançado, temi pelo meu destino. Percebo hoje que este livro só recebe respostas do tempo, só o tempo ensina coisas sobre ele. O tempo me diz o que sinto e se sinto é certo que o livro ainda vive em algum rincão do universo. O mar carrega o livro e mar ninguém controla. Talvez o livro volte e reaverei o peito e as víceras, talvez nunca o veja. Mas ao mar o livro pertence e dele jamais o irei roubá-lo, para que meu livro siga assim, sempre livre.


M.U.C.C.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Reciclando Angústias

Meu escritório mental anda um caos. Os papéis estão jogados por todos os cantos, o cesto de lixo transborda de projetos abandonados sob a forma de bolinhas de papel. Em minha boca segue o gosto de quem apostou no cavalo errado e agora o vê cada vez mais distante da linha de chegada. Assino à mesa enlouquecidamente documentos onde reconheço em firma a culpa por todos os meus fracassos e derrotas, "sim, a culpa é minha" - repete-se a frase folha à folha. Entretanto, prefiro o fracasso. Talvez só exista verdade na fraqueza. Que a areia movediça me leve cada vez mais para meu lugar de origem e que eu seja um bom filho ao retornar ao lar.

 Comer do pó, lamber seu sal e tremer com o frio da alma.

No meio deste cenário pouco ameno, o escrivão Raciocínio é aparentemente o mais agitado, corre atrás do que havia pensado ainda à pouco e já não sabe mais onde enfiou aquela ideia da noite anterior. O Sr. Lucidez deve estar doente pois já fazem alguns dias que não dá as caras, deve ser essas viroses. Dona Consciência está ao telefone em busca de conselhos, as linhas todavia parecem ocupadas. O chefe da repartição, apelidado pelo Dr. Freud de Ego, toca violão em sua mesa. Parece tranquilo, mas é sua forma própria de representação do desespero. Enquanto isso na sala de reuniões, que fica ao lado, todos falam ao mesmo tempo, argumentos e contra-argumentos são interrompidos por ofensas pessoais e velhas querelas. Não parecem convergir em nada.

  Comer do pó, lamber seu sal e tremer com o frio da alma.

Todos na verdade aguardam a chegada das gerentes Fé e Esperança. Com algum medo é bem verdade, pois não sabem se vem para comunicar o fechamento definitivo do escritório, férias coletivas, demissões, ou se realmente trazem boas-novas. Os funcionários desse escritório resistem sempre à chegada da Esperança e ainda mais do seu colega Otimismo, dizem que é procedimento padrão, "trata-se de precaução metodológica", "é praxe aqui da empresa". Elas ficaram de aparecer por esse fim de semana, o pessoal resolveu fazer até serão. Enquanto não voltam....

 Comer do pó, lamber seu sal e tremer com o frio da alma.


M.U.C.C.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

28

Quando um dia eu for luz e eternidade talvez perceberei que todo o tempo é uma coisa só, não como um Rio de Heráclito e sim uma lagoa. O tempo quem sabe é um grande holograma, uma aurora boreal, uma asa de beija-flor.



Nasci em um dia 28. Este ano completo 28. 28 é um número que não tem apelido entre os cantadores de bingo. 28 é um número qualquer, simplesmente existe porque tinha de haver alguma coisa antes do 29. Os números mais importantes foram escolhendo para si funções maiores, o cem completa um ciclo numérico importante e está na porcentagem, nos centésimos e nos séculos. O 33 teve o privilégio sacrossanto de ser a idade de Cristo quando morreu,  e nesse campo religioso temos o 3 da trindade, o 12 dos apóstolos, o 7 dos pecados ou dos dias da semana e tantos outros. No campo profano podemos pintar o 7 conforme o ensejo e o desejo.
Fui pesquisar, devia ser ignorância minha achar que o 28 fosse assim coisa tão banal, e descobri que o dia 28 de Agosto é o dia do avicultor e do bancário. Os bancários aliás devem ter uns três ou quadro dias para eles todo ano, fruto certamente de um lindo histórico de lutas e reivindicações da categoria. Para não ser tão negativo com a data de meu natalício, devo informar que Goethe nasceu neste mesmo dia. O que além de enobrecer muito o dia mostra que a mediocridade da data não significa necessariamente a do ser a ela ligado. Honra-me muito saber que tenho pelo menos isso em comum com Goethe.
Mas no fundo acho que há uma grande mensagem no número 28. A alguém sempre caberá a função de ser o intervalo entre os grandes números, o intervalo de intervalo, o elo que nada mais quer além do que ser corrente. E se pudéssemos olhar por um instante para nossas vidas como se fossem um imenso rolo de filme, veríamos que ela se faz muito mais de dias 28, 27, 26 do que de grandes acontecimentos.
O que milagrosamente acontecerá comigo quando o relógio chegar ao 12 no dia 27? "Como é fazer 28" diz sempre alguém, me deixando calado e sozinho com tamanho enigma. Quanto tempo ainda falta para que eu possa dizer que estou mais velho? E se em um rompante eu deixasse tudo para traz, mudasse de nome e cidade e tudo isso em uma única hora? E se eu simplesmente me metesse entre cobertas e fingisse durmir até que venha a segunda-feira? Quanto tempo ainda resta até que eu tenha 28?

M.U.C.C.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Vovós e Vovôs

de meus pais ganhei vida.
de meus irmãos outras,
mas deles tomei emprestado.
de meus primos ganhei férias,
sextas e sábados de poentes dourados.

na escola comprei novos irmãos,
mudas de loucos e sãos,
de crentes e pagãos.
e pelos livros fui a outras escolas,
fui aluno e professor por longas horas.

de meus alunos aprendi a ignorância,
não deles, mas minha.
com eles fui a Delfos e tive com Sócrates
e aprendi a desconhecer,
aprendi o que sabia.

Mas sobretudo, aprendi com meus avós.
aprendi que praque choro se tem fé.
aprendi de um Pai nosso e um venha à nós.
assentaram-me os tijolos
praque hoje eu fique em pé.



M.U.C.C.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

rádio-relógio

Enroscado em teias de sonhos e músicas acordei. Ainda pairava sobre mim milênios de sabedoria ancestral, não sobre a forma de conhecimento concreto, mas culpa e responsabilidade. Tomei a mulher ao lado nos braços, chamei-a de meu bem e a beijei. Já um pouco além vi crianças que dormiam, beijei-as com os olhos. Por fim lembrei meu nome e saí para o trabalho.





M.U.C.C.

sabedoria masculina heteroafetiva

As capas de revistas masculinas deviam vir com aquele aviso que se vê nas lanchonetes, "imagem meramente ilustrativa"!


As mulheres muito muito bonitas são para serem unicamente contempladas, pois em caso de sexo levaria o homem ou a servidão ou ao celibato. Seria como zerar o video-game!


As mulheres muito lindas são crueis, .... exatamente por serem muito lindas.


Flores, brincos e anéis são presentes infalíveis, mas um pouquinho de vinho ajuda!


Contra traumas não há argumentos.


Neurocientístas comprovaram o que todos já sabiam, o cérebro masculino não atinge a idade mental dos 18 anos.


Já o feminino nasce com mais de 60.


Fundue é coisa de mulher, tá talvez dos homoafetivos também.


Amizade com pessoas do sexo oposto é algo que só se descobre depois do casamento! (e isso é uma coisa muito legal! to tentando livrar minha cara!)


Toda sexshop deixa sempre a porta entreaberta.


Nunca leve sua namorada para comer lanche! Nunca!


Conversou com uma moça e ela mexeu no cabelo, .....pode saber.....


Nunca acredite em palavras, acredite nos olhos.


"você me respeite porque eu sou um pai de duas famílias" (direitos reservados)




M.U.C.C.

domingo, 31 de julho de 2011

Diários Austrais: Tango

Difícil tarefa tem aquele que deseja conhecer um outro povo em profundidade. Pois não estará lidando com matéria palpável, nações são edifícios feitos de areia movediça, tijolos de vapor e hastes que se movem como serpentes. Muitos pensadores se esmeraram ao longo dos séculos para tentar encapsular em tubos de ensaio a alma dos povos, das civilizações e das culturas, quase sempre sem sucesso. Hegel dizia existir um volksgeist (espírito do povo), Jung acreditava existir um incosciente coletivo que atravessava quase imperceptivelmente as pessoas, mais contemporaneamente disseram que somos feitos de discurso e, portanto, as identidades coletivas seriam como que estilos discursivos.


Seja qual for o conceito da sua predileção, para mim está claro que se quisermos conhecer alguma sociedade  que não a nossa temos que nos cercar de seus artistas, de suas histórias, de suas honras e suas tragédias. Temos que passar algum tempo ao lado de Kant, Mann, Goethe e Beethoven para começar a intuir o que é esse lugar chamado Alemanha. Sendo assim, quem quer conhecer nossos hermanos argentinos tem que ver/ouvir muito tango. Sei que a Argentina não é só tango como o Brasil não é só samba, mas aquela maravilha jamais seria obra de outro povo. Deve ler Borges com certeza, mas o tema hoje é tango.
Se você, meu improvável leitor, é daqueles brasileiros que não gosta de argentinos, permita-me a reprimenda: não se deixe levar por esse tipo de sentimento pequeno e tacanho. Escute ao velho Goethe que dizia:

"O ódio nacionalista é sempre o mesmo, tem uma característica única. Você o vai
encontrar tanto mais forte e cego quanto mais baixo for o nível cultural. Mas existe
um nível em que ele desaparece totalmente, onde por assim dizer a pessoa paira de
tal maneira acima das nações, que as dores e alegrias de cada nação sente-se como
se fossem as da gente mesmo. É nesse nível cultural que eu me coloco por índole, e
nele eu me situava bem antes de completar meus 60 anos de idade”

Voltando ao tango e aos argentinos, me admirei muito deles. Os argentinos são capazes de se divertir muito sem emitir um único sorriso. Vejam os dançarinos de tango, passam a noite mantendo a fronte sempre franzida, os narizes empinados e com olhar de quem enxerga a tragédia de seu próprio abismo. E estranhamente estão se divertindo ao fazer isso. É um triunfar que não esquece das derrotas, é um culto sem transe, é achar beleza em meio às mazelas. Neste caso dou razão a eles, como disse Leminsky (e cantou Assupção), um homem com uma dor é muito mais elegante.
Há outra elegância ainda no tango, o suspense. Nunca se sabe se os dançarinos estão a ponto de lutar ou fazer amor. Também não podemos saber se os bandoneonistas tocam seus instrumentos por amor ou por raiva. Essa medida de mistério é na verdade uma forma argentina de charme. Fica tudo por um fio, ou por una cabeza como canta Gardel. Há uma medida que separa o veneno do remédio, é na fronteira entre as duas coisas que mora o tango e a alma dos argentinos.



M.U.C.C.

Ouro de tolo

Nesses poucos anos de profissão, de casado, de alguns títulos e alguma boa-fama na praça poderia ter me deixado sentir satisfeito, recompensado ou bem sucedido. Mais nesta tola armadilha eu não caio. Minto, é claro. Já cometi a bobagem de muitas vezes me sentir em posição de dizer ou em condições de exigir. Como diz a velha sabedoria, a carne é fraca. Não unicamente em assuntos de amor ou paixão, como se costuma pensar, mas também e principalmente em matéria de vaidade.
Se eu conquistei algum tesouro nesse meu pequeno feixe de anos são as coisas que levo na memória. Lá guardo meus filhos, minha esposa e mais algumas quinquilharias. Enquanto eu puder fechar os olhos e me lembrar de tudo o que me cativa, de todas as noites alegres, as tardes floridas, as boas idéias, as grandes peças musicais, as moças bonitas, os amigos queridos, ainda terei valor e dignidade. Enquanto eu puder dizer " estive ali", "como vai você", enquanto eu ainda souber rir de uma piada e fazer bem a mais alguns, me atreverei a me chamar humano. Depois ...


buenos aires, 19 de julho de 2011

M.U.C.C.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Diários Austrais: Um instante

Por um instante fui lúcido e só por um pouco não me fiz lúcifer. Por um instante fecundo me fiz valer à pena por mais algum tempo. Por um instante não fui fraude, farsa ou anedota. Por um saudoso momento deixei meus olhos verem e meus ouvidos ouvirem. E nesse espasmo do existir me chamei marcos e tudo tinha nome, lugar e resposta. E nesse século-instante chorei. Lamentei por mim e por todos, como na epifania do profeta, como no cair das quedas do Iguaçu. Insistentemente chorei como um quebrar-de-ondas, vivi um choro-faxina e pude até me sentir honesto. Depois passou. E tudo deixou de ser, como sempre. Saído deste lúcido transe vesti a  vida do sempre-igual, fez frio, turvidão e dúvida. As enguias do desencanto voltaram a nadar em minha banheira.


Buenos Aires, 19 de julho de 2011


M.U.C.C.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Diários Austrais: 9 de Julho

Não conseguiria chamar de cidade um lugar onde não pudesse ouvir o barulho dos ônibus. Desde pequeno dormia embalado pelos roncos de seus motores. O barulho provocado pelo alongar das marchas entrava lentamente nos meus sonhos e se perdia em um infinito de interioridades. Por isso me senti em casa em Buenos Aires. Suas ruas largas, as pessoas enformigadas, a visão que se enturva pelas muitas luzes me trouxeram conforto. Eu vivi boa parte da infância na zona rural, gosto do campo, do rústico, mas sempre em caráter transitório e propositalmente descontextualizado. Sou definitivamente um homo urbanus. Buenos Aires, e sua hipérbole a avenida 9 de Julho, me receberam calorosamente.



Já disseram que o espaço urbano é o espaço do feminino. Diria, para além, que as cidades são como mães das quais nunca abandonamos as tetas. Ou, em se tratando especificamente de cidades que conhecemos à passeio, que são como namoradas. Conhecemos, flertamos, nos familiarizamos, desfrutamos longamente para depois, tristes, vivermos um afastamento dolorido. Aqui em Buenos Aires me senti assim, tiro fotos vorazmente, encantado com suas belas curvas e reentrâncias. Deixo-me perder por suas longas alamedas e exploro suas galerias, maravilhado por sua beleza e novidade.



Sonho um dia poder encontrar uma cidade com a qual eu possa me casar e só a ela me entregarei. Ou não. Por hoje penso em Buenos Aires com desejo e lembro ternamente da minha humilde mãe, Londrina.




Buenos Aires, 19 de julho de 2011

M.U.C.C.

domingo, 24 de julho de 2011

Diários Austrais: Dia 2


Uchuaia, se diz Ussuaia, é uma cidade fria. Não só por ser a mais austral do mundo, mas porque o frio aqui é um protagonista polissêmico. Pode se sentir o frio em várias dimensões e significados. Uchuaia foi criada para ser uma prisão do governo porteño ainda nos primórdios do século passado. Na pequena e gélida ilha argentina,  o governo queria erigir uma alcatraz, um Gulag, uma Austrália dos primórdios coloniais. O folclore que a cidade hoje alimenta em torno  da antiga prisão, por necessidades turísticas, dá ao frio a dimensão da ausência.
A ausência dos bandidos, dos presos políticos e das árvores que cortavam. Não é o caso de transformar condenados da justiça em heróis ou vítimas, coisa que anda já à algum tempo na moda. Mas deve-se notar com desconforto que aqueles condenados são hoje produto de consumo, seus pijamas podem ser comprados em lojas, a prisão virou museu e o trem por onde chegavam é ponto turístico, lindíssimo aliás. Há em Uchuaia o frio da ausência desses desgraçados civis que têm sua memória hoje invertida. Os indesejáveis são hoje vendidos e negociados para salvar a pele dos comerciantes.
Há também o frio da ausência dos índios que batizaram a cidade, estão em estátuas de cera, fotos e ilustrações, mas já não existem. Os guias engasgam quando perguntados sobre isso, "mas e os índios?" Suas respostas são mais vazias que o de costume. Este é um silêncio aliás que ecoa por toda a Argentina, para onde foram os índios? Suas palavras batizaram bahias e aldeias que já não podem usufruir. Não falo em nome deles, não acho que tenha o que ser reparado, mas também o uso mercadológico atual é um pouco desconfortável. Não quero parecer dramático demais, mas me sinto na obrigação de fazer este juízo histórico.

Contudo confesso que frio mesmo senti dentro de mim mesmo. Gelei como o frio-de-barriga em montanha-russa. Senti o frio do susto. É o susto de se sentir migalha frente as gelerais, os picos andinos e o imenso. O susto mediante as chacoalhadas do avião. De repente lembrei-me quem sou, a natureza me esbofeteava com sua grandeza. Este foi o verdadeiro e eloquente frio de Uchuaia, notar-se pouco e insuficiente. Notar-se em seu tamanho natural e verdadeiro. Ser migalha pelas saudades e pelos limites.



 Uchuaia 15 de julho

M.U.C.C.

terça-feira, 28 de junho de 2011

encanto e desencanto

A vida que levamos é dura demais. Se assim não fosse não teríamos que sonhar para dormir, poderíamos passar a noite toda dormindo e revisando os acontecimentos do dia anterior. Mas só dorme quem consegue escapar à vida que levamos de olhos abertos. Já disseram, neste mesmo sentido, que não existe sociedade humana que não possua mecanismos de escapismo, de fuga da realidade. Êxtases, alucinógenos, encantamentos, fantasias são também saudáveis em um certo sentido e em uma certa dosagem. Fugimos das aflições e nos damos ao direito do deleite.
Com o tempo essas escapadas podem se tornar mais sofisticadas e menos perigosas. Dessa sofisticação nasceu a arte, creio. Nem tão séria como um rito xamânico, nem tão despreocupada como um faz-de-conta de criança, a arte nos permite voar tendo a certeza de que os pés permanecem firmes no chão. Não é sonho, mas convence. É como um porre, mas sem ressaca. Tem quem diga que o elemento que nos faz verdadeiramente humanos é a razão, outros dizem ser o trabalho, outros ainda a consciência, mas eu me atrevo a dizer ser a arte. Não digo como quem discorda, mas como quem muda o ângulo.
Existem pessoas que passam a vida sem fazer a menor questão de experimentar arte em níveis significativos. O sujeito ouve música no rádio, na igreja, na festa, mas não se dá conta do acontecimento. Ou assiste um filme como quem faz palavras cruzadas. Para mim essas pessoas estão perdendo um pedaço de si, estão vivendo um aquém-do-homem. Nem todos somos obrigados à devoção do crítico, do esteta, do musicólogo, do dramaturgo, mas creio que todos podemos experimentar a arte profundamente. Não se trata de rigores acadêmicos e crivos canônicos, mas de sensibilidade. Um ser humano não poderia passar em branco diante de uma linda ária, um belo afresco ou um elegante conto. Alguém insensível diante da arte está privado de uma porção relevante da alma humana tanto quanto alguém que não consegue exercer adequadamente suas faculdades lógicas.
O mais lamentável é pensar que isto é sim uma questão de educação. Não de escolarização, mas de educação em um sentido mais amplo. Rubem Alves disse que ninguém gosta de caviar se só lhe for oferecido arroz e feijão, neste mérito lhe dou razão. De tudo o que me frusta sendo professor, o que mais me atinge é ver um aluno absolutamente brutalizado, incapaz de ver beleza no que é evidentemente belo. Penso que mais que guerras, crises e revoluções devo ensiná-los a beleza. Cidadania é também um conceito estético. Os alunos não aprendem o que não percebem sentido, berra uma pedagoga cheia de verdades, eu quase concordo. Mas prefiro pensar que não é uma questão de sentido é uma questão de encanto. Todo saber nasce do espanto já diziam os velhos gregos.
Ando impaciente com a realidade, o Brasil é um caso perdido definitivamente. Rogo para que a Copa não saia, que os estádios desabem, sem ninguém dentro é claro, que falte luz, hotéis e pistas nos aeroportos, nós merecemos. Jornais, telejornais e e-jornais são tarefa dura demais para mim, não posso com eles. Paloccis, Batistis, Mescadantes, Fuxis me venceram pelo cansaço. Fiquem com o Brasil para vocês, brinquem à vontade desse teatro macabro. De tão trágico faz inveja a Sófocles, de tão explícito e sarcástico faz Genet corar. Eu fico na companhia da nuvem de gênios que este planeta já gerou.


M.U.C.C.

sábado, 11 de junho de 2011

Caminho de Emaús.

Medi meus passos enquanto andava pela calçada, assim meio de canto de olho. Faço isso encanto me divirto andando pelo centro da cidade, principalmente quando não tenho para onde ir. É difícil ter a medida de si mesmo. Calcular o tamanho de nossas pegadas não é apenas um problema métrico, é um  problema crônico. As  vozes múltiplas que vem de dentro são sempre muito ruidosas, são sempre muito eloquentes e fazem desta tarefa sempre um desafio. Penso que, mesmo com toda essa dificuldade, todo ser humano que faz por merecer o nome, humano, deve analisar suas pegadas, se possível cotidianamente. Deixar brotar de si uma conversa honesta, franca e positiva. De que vale a vida sem perceber sua dimensão?
Acho que é por isso que sempre gostei de caminhadas, deleito-me em minha própria companhia, carrego um armazém de bobagens, às vezes me controlo para não rir sozinho.  Planos nascem, ideias e ideais, a vida se refresca, a mente se entope de novidades. É clichê, eu sei, já vi até o Chico Buarque (nada pode ser mais clichê que o chico) falando sobre o tema, mas é tão verdade que me dou a esse direito, se você não se incomodar improvável leitor. Correr é bom também, mas atrapalha um pouco o pensamento, o prazer é mais físico do que intelectual. Andar é como assistir uma palestra dada por si mesmo, podendo ainda perder-se em tantos temas, abrir e fechar janelas de bate papo consigo. Não era em vão que Aristóteles dava suas aulas andando, um dia chego lá.
Tive grandes caminhadas na chuva, no frio, na praia, em estradas de terra, no calçadão, ainda  de petit pave, e principalmente nas margens do lago. O Igapó é feio eu sei, quando chove parece toddy de tanto assoreameto, muitas vezes exala cheiros incômodos, mas é o lago que passa em minha aldeia, se é que Pessoa permite o trocadilho. Vi o céu se pintar de todas as cores, já vi dia, manhã e noite, andei menino, rapaz e homem. Andei, ando e andarei por lá. Caminhada é uma espécie de metalinguagem da existência. É uma narrativa de si sobre si. Caminho, trajeto, pegada são, nesse caso, palavras de duplo sentido.
Há também a caminhada em que ao vascular suas entranhas se pode encontrar com algo externo, absolutamente outro. A Este chamamos Deus. Me lembro de Tê-lo encontrado uma vez subindo a rua Guararapes, outra ainda descendo as escadas do Edifício Alaska, me lembro de passear ao Seu lado nos carreadores do São Rafael. Essa é a Estrada do Emaús, curioso é que já vivi perto à uma estrada que chamava-se Emaús em referência ao trecho biblíco e também andei por lá ainda menino. A Estrada do Emaús é o ponto onde solitário se pode encontrar com Deus. Não é uma experiência coletiva, nem que se faz conduzir por outrem, é um estar só, pero-no-mucho. Não vou muito à Igrejas, não tenho um rótulo religioso mais, não converso muito sobre o tema, não gosto muito da maioria das pessoas religiosas que conheço, mas caminho. Gosto muito de estar em Emaús.


M.U.C.C.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Selfmade mistake

Por uma fresta dos tempos permaneceu ele ali em frente a uma túrgida melancia. Não foram muitos segundos, nada que pudesse causar estranheza em alguém que percebesse a cena. Lembrou-se de tardes quentes, de sua saudosa mãe, de sentir o suco correr pelos braços. Nesta curva do tempo fez-se tarde e primavera, os botões abriram e murcharam, foram muitas luzes de muitos carnavais. Quase arriscou um sorriso, mas logo voltou à realidade. Se deu conta do motivo de sua saudade de melancia. Melancia é uma fruta comunitária, não tem versão single, não tem como comer sozinho. Sentiu a boca amargando, não pela falta da fruta, mas a dos amigos, da mãe, das férias e de toda uma vida já quase morta. Mais do que nunca estava só, sentia-se só, estava desacompanhado de quase tudo. Sempre se sentira dono de si, conquistara uma rotina em que tudo parecia exclusivamente seu, do carro às cuecas, ganhou e perdeu a vida só. Teve o ímpeto de demitir-se de si, a melancia em sua frente provara seu fracasso, sua ingenuidade. Voltou para casa cabisbaixo e só.



MUCC

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terça-feira, 31 de maio de 2011

O gesto de lembrar.

Ela põe as mãos entre as pernas e ergue levemente os ombros, toma o ar com força e tem um semblante penitente. Depois o café e um bolo se houver. Faz do gesto um ritual, como quem traça a cruz na fronte ou se ajoelha em reverência. Lança o instante no infinito, se deixa atravessar pelo passado, repete o gesto de gerações. Nunca morou no campo, nunca cingiu o peito da lida, mas traz num movimento a memória corpórea de um Brasil que quase não mais existe.

M.U.C.C.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Coisas de Criança

Fiquei um tempo sem escrever no blog. Culpa da minha cadeira que quebrou, devia ter escutado a vendedora da Giroflex. Para usar o computador tenho que sentar num banquinho e, convenhamos, quem pode alimentar um blog sentado num banquinho? Pior para o meu filho, que perdeu a poltrona do seu quarto para que agora eu possa voltar a escrever. Ele não usa mesmo. Dito isto, vamos ao que interessa.

As nossas memórias de infância são como o tema inicial de uma sinfonia. A vida passa, os músicos viram as páginas das partituras, novos timbres aparecem, a orquestra cruza vales e montanhas, mas há sempre o reencontro com o tema inicial. Ele ressurge transformado,  mas volta. Envolto em longos feixes de estranheza e desencontro brotam familiaridades, cheiro de chuva, cheiro de pão, o gosto do doce ou o barulho do carro. Lembro-me deitado em minha cama à noite sem conseguir dormir, posso ainda ver a luz que entrava por pequenas frestas da janela e os formatos estranhos que surgiam na parede. Lembro de fazer orações, lembro de falar longas frases com palavras que não existem, lembro que nessa época eu torcia para o dia nascer logo. Hoje torço para o outro time.
Mas para que servem essas memórias? Não servem, por isso valem tanto. Elas estão em nós antes de nós mesmos, nós nos fizemos delas. Antes que pudéssemos buscar por serventias para vida, elas já eram. Não se trata de usá-las para terapias, não se trata de darmos utilidades, nem de organizá-las cronologicamente. Delas nascem os cheiros, delas nascem as cores, texturas, sentimentos. Encontro-me com elas quase como se fossem reminiscências platônicas. Desse tema inicial vem o pulso que percorre toda a sinfonia, ao redor desse pequeno conjunto de notas singularmente organizadas gravitam todas as outras. O cheiro do arroz da minha vó, a gemada da outra, a voz da minha mãe me chamando de manhã, o sorriso do meu pai.
Mas sabe, digo agora mais discretamente olhando por cima das lentes dos óculos, o que me pôs a tecer essas poucas linhas foi um encontro com uma dessas lembranças. Lembro-me de uma manhã de Natal. Muda, totalmente muda, as conversas eram todas de adulto. Eles deviam estar sintonizados em outra frequência, não pude ouvi-los apesar de lembrar dos lábios se mexendo. Franziam as testas, pendiam com o corpo para trás, coçavam a cabeça, tinham todos uma feição grave e solene. Lembro-me de outro que permaneceu estático, braços cruzados, cara de mau, enfrentando tudo com as costas. Neste dia aprendi que existem coisas de adulto. Penso que minha infância começou a morrer ali. Foi um pouco como Adão e Eva saindo do paraíso, de Caravan. O que aconteceu? Prefiro dizer que não sei, são coisas de adulto.
Com o tempo vai se aprendendo a sintonizar a rádio dos adultos e muitas vezes já tive de ligar nesta estação. Papo de adulto é como final de campeonato, um pouco antes de começar a orquestra muda o andamento. Nessas horas o um canhão de luz se ascende sobre sua cabeça e o técnico vai abaixando levemente as outras luzes. Para mim é sempre como viver aquela manhã de Natal, perde-se um pouco mais a inocência, percebe-se a própria nudez, sinto-me um pouco mais distante daquele jardim idílico original. Por isso quis escrever hoje, para ver se acho de novo a rádio das crianças. 


M.U.C.C.

terça-feira, 26 de abril de 2011

o falso herói

Sorvia o falso cheiro de caramelo e cola ainda sem provar-lhe o gosto e sem ter se desfeito da falsa idéia de uma vida digna. Parado permanecia nosso herói com olhar de pistoleiro de bang-bang e pose de Robert Plant, culpa da lombalgia. Não sabia ainda à esta altura que teria o mesmo fim das bitucas de cigarros que não fumava, das sacolas amarrotadas do mercado ou quem sabe com mais sorte das garrafas Pet. Seu futuro era a eternidade. Ignorando tal desastre, rompia inércias paquidérmico. A ignorância fora até este momento seu mais fiel escudeiro frente a toda dureza de tudo. Mas nem sempre ela funciona e nosso Herói carregava já a algum tempo rugas e sinais de consciência. Seu andar, ah seu andar, mereceria talvez maior atenção do que ora dispomos, mas em síntese pode-se dizer que faziam citação direta a Cervantes e representavam esperança quase em estado bruto. Os braços, que aos poucos passavam a pendular, também podem ser representações em contra-ponto de algo ainda positivo, reforçavam as sugestões deixadas pelas pegadas.

Este falso herói é sábio, é sábio porque é falso ou o contrário. Não se dá ao direito de cuidados, não se entrega a amores. Foi expropriado, se é que ainda se pode usar esta palavra livremente, de suas paixões. Vindo da erudita formação do nú e crú, teve nas dores suas melhores professoras e companheiras. O falso herói manteve do verdadeiro os trejeitos, a casca, o modo de andar. Mas seu conteúdo íntimo, verdadeiro, essencial foi sabiamente subtraído. Este mundo-cão roubou dele seus carroços, seu sumo e sabor. Mas se você acha que este é um herói marginal e derrotado, se pensou se tratar de um anti-herói esteticamente projetado para fazer ode à feiúra, enganou-se. Ele é senhor contemporaneamente. Quer fazer do mundo um ovo sem clara e gema, argumenta que faz mal, só casca presta. Quer nos ver empadas sem azeitonas, bolos sem cerejas. Seus poderes parecem cada vez maiores e seus poderes ilimitados. É como o Big Brother do Orwell, o verdadeiro, só que é burro. Totalmente desprovido de encanto intelectual, mas pasmem, tem dado pro gasto. Manda e desmanda e everybody shakes....

O que faremos? Temeremos? Eu não. Só de sacanagem.



M.U.C.C.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

fotografia

Haverá um dia em que a única coisa que restará desse mundo que conhecemos é uma fotografia. Uma fotografia tirada em um dia qualquer, de uma festa banal quando os salgadinhos já estavam frios e os refrigerantes quentes. Você não sabia, mas estava deixando ali o último registro, o ultimo legado de toda a humanidade que existiu em si. Eu já fui menino, já sorri sem os dentes da frente, já corri da monga, já sonhei ser grande e descobri o amor da minha vida da última semana. Hoje minha filha não tem dentes, eu não tenho muito cabelo. É triste pensar na série lógica de raciocínio que termina quando virarei fotografia. Um dia serei só fotografia. Talvez também por isso escreva aqui, tenho vontade de viver mais um pouco, mesmo que só na memória dos outros. Mas sonhar em ser inesquecível é um surto que não deve tomar conta da cabeça de ninguém, a sede por estar em livros e catálogos só faz surgir Napoleões, Hitlers, Getúlios entre outros. Saibam que o que vai sobrar é provavelmente aquela foto mais ordinária de um dia sem paixão. Por isso quero amar o ordinário. A festinha desanimada, o calor desmilinguante, a frase sem beleza, tudo é vida e tudo vive ainda em mim. É um erro viver a vida com enfado, pense na fotografia. Um dia só haverá fotografia. Somos treinados para querer a glória, os louros, as grandes aventuras, os grandes romances, eu quero a minha vida. Mas a vida será só nascer, crescer, casar, ter filhos e depois morrer, pergunta você, sim, e já não está bom? Não quero deixar que a sombra dos grandes sonhos me faça tratar com desprezo essa vida real. A minha vida do jeito como está já é complexa demais, excitante demais, misteriosa demais, sagrada demais para que eu fique olhando-a com cara feia. Penso muito na morte, já pensei em antecipá-la algumas vezes, mas é bobagem rasteira. Bom mesmo é rir da própria desgraça, rir da própria piada e dar um abraço em quem estiver passando do lado. Bom mesmo foi sofrer tudo o que sofri, e sofro até hoje, e com o tempo ir percebendo a dor diminuir, a cicatriz se concretizar e voltar a ver as cores do dia-dia voltarem ao normal. Elas sempre voltam. Mas penso muito na morte, não com medo nem superstição, mas como um aluno que se apressa em completar a prova na medida que o relógio anda. É preciso sabedoria para não deixar questões em branco sem deixar de dispensar o tempo de reler as questões, reescrevê-las se possível. Sempre gostei de tragédias, mas hoje tive que escrever esse texto positivo. Tive que olhar o copo meio cheio, e ver as coisas pelo seu lado mais bonito. Não se acostumem, improváveis leitores. Só quero poder dizer xis na hora da minha fotografia!

M.U.C.C.

domingo, 3 de abril de 2011

Duas belas manchas

Para um míope a realidade é mais expressionista, ou impressionista dependendo do tamanho do déficit visual, do que para a maioria. O mundo é antes de mais nada uma bela mancha com a qual interagimos, nós os míopes. Ao longo de já não tão pouco tempo de vida, fui aprendendo a usar vários tipos de óculos na sempre inútil tentativa de tornar meu exterior menos mancha, menos caos, menos enigma. Existem óculos-ideologia, óculos-posição social, óculos-ocupação profissional, óculos-família, óculos-óculos, e tantos outros ora aqui engavetados sob minha mesa. Somos então forçados a ver o mundo através desses muitos óculos que escolhemos para usar. Vamos nos notabilizando pela habilidade de trocar de óculos ou de usá-los em sobreposição para tentar achar um melhor foco, tornar o mundo mais nítido. Mas há sempre um momento em que tiramos os óculos e nos deparamos com a mancha que a realidade das coisas se torna para nós. Há este mágico instante em que nos entregamos ternamente aos doces e sedutores lábios da incerteza e da imprecisão. São duas belas manchas que nos abraçam e envolvem e logo partem já deixando saudade. É quando chega o momento de viver conformado com um mundo-mancha, um mundo que flui tão ávido que não se pode delimitar fronteiras. Um mundo em que as cores oscilam, as pernas vacilam, as palavras se rarefazem e tudo é menos certo que provável. Neste mundo não se anda, nada-se. É um mundo sem conceitos, prefeitos, perfeitos e tal. Mas com muitos defeitos, tantos que já nem importam, pois quando se está sem óculos é porque já não se tem a pretensão do acerto. É mundo-mancha pô. Hiato de rotinas, fresta de cortinas e um engasgo das sinápses. Mundo-mancha. Depois disso vem o sono e no outro dia, os óculos.

M.U.C.C.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Dos Milagres

Há, houve ou haverá um momento em que aquele redundante perfume de sempre volta, voltou ou voltará a perfumar. E mesmo que ele nunca tenha deixado de perfumar, nem se quer por um instante, mesmo assim, só então voltará a ser perfume. Mesmo ao percorrer aquele percurso de sempre é possível, com um pouco de sorte, perder-se. É possível vivê-lo como se o estreasse. Somos seres magicamente lindos, inteligentes e complexos, mas vivemos constantemente exilados desta magia. Vivemos constantemente sob o embotamento das previsibilidades produzidas pela mente, somos cativos de causas e efeitos que nós mesmos produzimos e que nos parecem sempre funcionar. A vida assim tem o tamanho de nós mesmos e o fim desta série lógica é o tédio, o enfado e o nihil. Mas há, houve ou haverá o instante mágico em que nos percebemos de fato. Somos novamente capazes de cheirar o que não parecia ter cheiro, tocar o que não tinha textura, amar. Não sei explicar exatamente este fenômeno, talvez não seja nem o caso, de tão sutil e delicado talvez só seja captável pela intuição. Uma frase inúmeras vezes lida que se ouve como inédita, os olhos que passam de repente a ter um olhar, o gole d'água. Não sei, mas sempre vivi momentos assim, desde muito pequeno. Vez ou outra sentia o mundo girarando em uma rotação diferente, as palavras que dizia me soavam externas, exóticas e pouco familiares, eram momentos de autoestranhamento. Nunca consegui explicar, não sei se é um defeito, doença, alteração hormonal. Mas costumo chamar de milagre.

M.U.C.C.

domingo, 27 de março de 2011

elela

Ela quer e ele parece que também. Ele ainda não fez mais do que se entregar ao trabalho e a dureza da vida, ainda não teve a oportunidade de vivê-la levando os sonhos tão à sério como ela gostaria. Ela vive de levar os sonhos à serio, e lhe parece estranho ter de viver assim com os pés tão fincados à realidade. Ele veste-se demais, ela diz, perfuma-se de menos, ele não interessa-se pelo estar vestido e pelo tipo do perfume. Ele quer é despi-la e sorver o cheiro, de resto...Ela não sabe como poderá compartilhá-lo com os olhares dos outros, não sabe como fazê-lo parte de seu mundo de sempre muitos sonhos e dos dilemas gerados por suas muitas interpretações.
Elela são assim o arquétipo infinitamente repetido do homem e da mulher. São como a bailarina apaixonada pelo soldadinho de chumbo, a princesa que se desencastela por amor ao plebeu, a dama e o vagabundo comendo spaguetti ao luar. Não sei se nos apaixonamos pelo diferente, não sei se os opostos se atraem. Não sei se a dama se separou do vagabundo quando percebeu que ele era vagabundo mesmo, não sei se a bailarinha ficou viúva quando o soldadinho foi para a guerra. Penso que há uma cumplicidade necessária aos relacionamentos que se alimenta de muitos pontos comuns, existem momentos em que é preciso jogar no mesmo time e levantar a mesma bandeira. Mas eles sorriem tão lindamente no retrato.

M.U.C.C.

terça-feira, 22 de março de 2011

SIlêncios

Estranha-me ter de chamar por silêncio tão grande variedade de coisas.  O Cristo permaneceu em silêncio. Silêncio suficiente e pedagógico. Não rebateu acusações, não se deixou afetar. Quando falou disse apenas: Tú o dizes. Não era preciso dizer o que o universo mesmo dizia. Neste caso cabe o dito, quem se justifica se condena, evidentemente vivido ao contrário. O silêncio também se presta a eloquência.
Há os que só param de falar quando se cansam. Em geral, quando isso acontece já é tarde. Já se falou mais do que o cabível, mais do que a prudência aconselha. Perdem de viver o que de melhor o silêncio tem  a oferecer. Quem silencia permite à mente respirar, permite-se sorver melhor do presente. E ninguém pode se desculpar dizendo que não se cala por ignorância, porque antes de tudo o silêncio é uma linguagem do corpo.  O sono certamente é sua manifestação mais exemplar. É preciso calar-se completamente para dormir, calar as vozes mais inaudíveis, calar os argumentos da mente e os debates da consciência. E só neste estado de silêncio nascem os sonhos, poesia que intercala os longos capítulos em prosa do dia-a-dia.
Hoje passei o dia falando, dever da profissão e de cordialidade com os amigos, mas no fundo permaneci em silêncio. O silêncio da alma. Aquela voz que sonha, projeta, ama, pulsa, se revolta, se insurge, os vocativos que proferimos em nossa própria direção permaneceram todos calados. Greve geral dos muitos eus que me compõem. Eles estão cansados dos meus mesmos erros, estão cansados de ter de pagar as faturas dos compromissos que assumo. E talvez por isso, e até por ressentimento, passaram o dia quietos. Não me deram nem se quer satisfações. Acusando o golpe e consentindo a culpa, me calei. Também.

M.U.C.C.

quinta-feira, 17 de março de 2011

A ressaca de Bukowski

Eu não me considero uma pessoa conservadora, nem no sentido ideológico nem no sentido comportamental. Tive sempre em minha, ainda curta e medíocre, biografia uma pitada de transgressão, inconformismo e um apreço pelas marginalidades estéticas. Se não o fora, não teria cursado História, para o latente escândalo dos que me cercavam. Teria feito direito, ADM, ou outras óbvias opções que me assediavam. Exatamente por ter esse gosto por deixar o cabelo descabelar, a roupa furar, a barba crescer (a barriga cresceu movida por outras forças) estou cada vez mais seduzido pelos conservadores. Não os compro totalmente, não me sinto um deles, não consigo aliás me sentir parte de nenhum bloco ideológico monolítico. Seria como virar uma estátua. Mas eles é que passaram a representar a rebeldia dentro do campo cultural brasileiro. A cultura brasileira abraçou uma sofisticação de verniz, um apreço pelo popular (mantido à distância evidentemente), uma vanguardice comportada fazendo tudo soar mais falso que sorriso de Miss. O futuro-natimorto-tropipilantra blog da Bethânia é, neste sentido, paradigmático.
Exatamente por esta náusea que se turba em meus ventres cotidianamente, resolvi falar do Paulo Briguet. Gosto do briguet porque além de escrever muito bem, tem a coragem de ser um fora-de-moda e dizer coisas que soarão cafona nos meios em que transita. Ele é um outsider do eixo Marx-foucault-GLS-canabis-etc....e isso já é considerado delito nos meios culturais brasileiros atuais. O que traz uma nódoa transgressora aos seus textos. E a arte deve ser sempre transgressora! Não penso exagerar sinceramente. Discordo de Briguet na afirmação de que não deva haver verba pública para a cultura. (leia aqui o artigo em questão) As favelas precisam de bibliotecas e projetos que as tornem realmente úteis, precisam de espaços para teatro, cinema e rádio. Não só as favelas, mas entenda a figura de linguagem que proponho. Mas também acho que espetáculo não deve ter verba pública. Artistas do mundo inteiro, se virem para tornar-se viáveis. Se há capital valorizado nestes dias é o da espetacularidade. Sempre houve arte de vanguarda, marginal ....e o escambau, sem que tivesse que passar o chapéu diante da classe política. Aliás, quem é marginal mesmo, vanguarda mesmo, muderninho mesmo, deveria ter asco de verba pública. Deveriam se sentir comprados pelas forças propagandísticas do estado. Quem diria que um autor católico pudesse soar provocador e Charles Bokowski soar obediente!

M.U.C.C.

Felicidade

Sempre seguindo...(com bom twitteiro)...você , minha felicidade. Você é sempre tão tímida, tão privada, tão clandestina que me dá um enorme trabalho ter de correr ao teu encalço. Farejo-te por todos os longos dias de nossa distância. Analiso pegadas para ver se seriam realmente tuas, há sempre o perigo de falsas alegrias. Sei que nossa distância é quase sempre minha culpa, sei que não sei me fazer leve, não sei me alegrar com o que sou, mas sei também que andas ocupada a fazer rir muitas crianças de todas as idades, e por isso desculpo a sua ausência. Mas sem querer me alongar, quero apenas dizer que estou te escrevendo para te dizer que quero muito te encontrar de novo, quero muito te encontrar mais. Tenho sempre muita saudade. Quero passar um fim de semana completo em tua companhia, quem sabe até, sem querer lhe tomar demasiadamente seu exíguo tempo, poder desfrutar de sua companhia por toda uma temporada. Mas caso contrário, te entenderei. Continuarei te perseguindo, não serei daqueles que se tornam ressentidos pela sua ausência. E se na pior das hipóteses nunca mais te encontrar...bem, então te encontro na saída.

M.U.C.C.

terça-feira, 15 de março de 2011

sapatos de dorothy





Vermelhas carnes de vermelho pulsar,

de tão vermelhas vermelham a vida,

vermelham bochechas anaeróbias de amar.



Vermelho como os sapatos de Dorothy.



Vi vermelho nos olhos,

crianças sem colos,

não era show, era choro.



Choro de vermelha goela, sofridas princesas sem dote.



De vermelho se pintou o amor,

mas quase sempre de vermelho a rua também esta pintada,

de um vermelho que não vale risada,

de um vermelho-quase-preto e vingador.



Se há brancos, amarelos, pretos ou N.D.A. por dentro todos somos vermelhos.



M.U.C.C.

domingo, 13 de março de 2011

Um albatroz chamado livro

Abrem-se suas asas e começa a jornada (soou como Fiori Gigliotti). Seu bate-asas constante, o renovar das próximas folhas, cria-se um novo mundo a cada movimento. De mundo em mundo segue o vôo, em silêncio. Lá no alto pode-se ter o prazer do nada ouvir, a não ser as vozes que brotam do interior da nobre ave e como são muitas as vozes e muito distintos seus ruídos não há tempo de se sentir só, nem doente, nem ao menos triste. Suas garras nos prendem tão firmes que não há como temer o elevar-se do chão, seu vôo tem o frescor do estar em férias, suas manobras são confortáveis e hospitaleiras como um bangalô à beira-mar. Às  vezes à hora das obrigações do dia, às vezes o sono, que nasce dessas mesmas obrigações, ou ainda uma ruidosa criança nos faz cair de lá do alto. E como dói. Ter de botar os pés na vida novamente, chamar as coisas pelos seus nomes mais óbvios, apanhar um camisa amarrotada no chão, verter suor e olhar o relógio. A ave pousa em um galho e nos segue olhando pelo tempo que precisarmos. Até que possamos lhe abrir as asas novamente para voar.

M.U.C.C.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Caraminholas

Minha testa e minhas mãos tem uma afinidade terrível. Não se pode vacilar por um minuto que já estão se alisando. Desta fricção são produzidas centenas de caraminholas, que por sua vez são muito férteis e procriam atingindo índices de fazer inveja aos coelhos e aos hambsters, sei tudo de Hambsters depois que minha filha virou criadora e fornecedora do petshop. As caraminholas são viscosas e contagiosas, infectam pensamentos coerentes e honestos e tem um poder de influência e controle de fazer inveja aos sindicatos. As caraminholas são facilmente atacadas no começo, quem já não se pegou dizendo: "isso é besteira da minha cabeça". Nesse momento glorioso pode-se ver uma caraminhola devidamente desmascarada e isolada do convívio neuro-social (ou seria neurossocial na nova norma ortográfica?). Mas elas tem ótimos disfarces, as mais letais tem a capacidade de permanecer em estágio de incubação por anos e de repente afloram já interpretadas como se fossem pensamentos inofensivos, fidedignos e livres de qualquer censura. Está feito o estrago. Saibam que as caraminholas são grandes organizadoras de motins e agitações maldosas. Estou em desespero, minha testa e minhas mãos não tem se largado ultimamente.

M.U.C.C.

quarta-feira, 9 de março de 2011

utopias do coração

Este texto dialoga com o que eu acabei de escrever no outro blog. O outro é mais pretensioso esse é mais debochado.

De todas as formas de utopias existentes a mais forte é sem dúvida a dos relacionamentos. O príncipe encantado ou a princesa aprisionada na mais alta torre é uma idéia tão violenta e arbitrária como alguém querer fazer você tomar por verdade algo não faz sentido. Os homens sonham mais com utopias físicas, e os cirurgiões plásticos e os sites de pornografia não me deixam mentir. A utopia relacional masculina é antes de tudo uma utopia sexual. Eles querem, notem que falo como the não jogathe nethe time*, a visão de uma mulher ideal, plásticamente ideal, ou siliconicamente ideal, são as formas que valem não os conteúdos, ao menos como regra geral. Muitos homens são capazes de suportar o insuportável para saciar a ânsia da utopia física. Convivem com pessoas vazias, chatas, superficiais em nome da fruição plástica. Pagam o mais alto aluguel para viver em um palácio de curvas niemeireanas. O pior é quando as primeiras infiltrações começam a aparecer no grande castelo, haja reboco e massa corrida!

As mulheres, bem as mulheres, são ainda mais severas na utopia. Elas realmente prestavam muita atenção nas histórias que ouviam antes de dormir. Deve ser alguma propriedade da cor rosa que tanto abunda em seus aposentos infantis. O pior não é sonharem com o príncipe encantado vindo em um belo cavalo e as salvando do terrível dragão, isso até dá pra resolver em dias de inflação controlada o dragão anda sonolento e os carros mais acessíveis. Também não são os fortes e heróicos valores morais, isso da pra fingir por tempo suficiente até que venha o casamento. O problema maior na utopia feminina é o "e viveram felizes para sempre". Esse é um ponto que parece difícil de demovê-las, é ai que a utopia pega.

O que devemos fazer, contar histórias de separação ou celibato aos nossos filhos? As escolas devem oferecer aulas como: A Bela Adormecida: os fatos por trás do mito? Não há porque esquecermos nossas utopias, já disseram que elas nos fazem andar. Esse é o ponto, as utopias podem me ajudar a querer ser mais príncipe encantado, ou mais juliana Paes sei lá, me põem em movimento. Mas não devem ser usadas por mim para por os outros em movimento, eu acho!


*leia o som do th como no inglês botando a língua entre os dentes (essa eu aprendi com o Lobão, que escreve assim quando reporta falas do Cazuza na sua autobiografia)

M.U.C.C.

Os grandes e os pequenos.

Se eu tivesse alguma vergonha na cara desativava este blog de uma vez por todas. Não sei escrever, isso não é show de autoflagelação artística, e chego quase a me sentir mal de ocupar seu tempo improvável leitor. Cometo erros ortográfricos, minha pontuação muitas vezes deixa muito a desejar, me atrapalho com ênclises e mesóclises e o diabo. Sem falar em aspéctos mais profundos como estilo, ritmo e fluência. Sou metido a tocar violão também, pois nesse carnaval tive a oportunidade de ver o grande João Alexandre tocando e saí do espetáculo com o dever de nunca mais encostar a mão no meu violão. Dever esse já devidamente desobedecido é claro.

Há muita beleza e talento no mundo, tenho a impressão de que já há arte suficiente para todos. Não precisamos de novos escritores, leiamos Ésquilo, Cícero, Virgílio, Rabelais, Machado de Assis, Dostoievsky, literatura americana, latino-americana, russa, escandinava, tcheca. Deveríamos ouvir décadas de Villa-lobos, Debussy, Bach até nos darmos ao direito de quem sabe cometer a pachora de escutar um disco de Rock'n Roll. Não deveríamos ter novas ideias, usemos a dos antigos filósofos, não há de faltar conceito, reflexão, neologismos e tal. Deveríamos decretar por pelo menos dez anos um recesso artístico mundial, descobriríamos um oceano de novidades hakeadas de museus, arquivos, antiquários e mercados de pulgas.

Nem sempre se tem algo relevante entre as novidades, vou além é mais provável que não tenha. Fico admirado com as locadoras de filmes, cobram mais caro pelos filmes mais novos. A mim não faz o menor sentido. Todos os filmes antigos passam por uma seleção quase darwiniana exercida pela crítica, pela popularidade e pelo próprio tempo. É óbvio que entre os filmes antigos só restam nas prateleiras os verdadeiramente relevantes, entretanto entre as novidades encontra-se todo o tipo de lançamento. Não precisa ser um gênio para perceber que é muito maior a chance de se encontrar um filme bom entre os mais velhos do que ente os lançamentos. Os melhores são mais baratos e os piores mais caros, não dá pra entender! Talvez seja por isso que as locadoras estão falindo, apostaram sempre em um público ansioso por novidades que agora as estão trocando pelos piratas que são mais ágeis e baratos.

Esse apego histérico pela novidade só tem servido para produzir seres cada vez mais imbecis. O impacto inicial das coisas nem sempre se mantém depois da seleção do tempo. Me lembro de sair da sala do saudoso  Cine Vila Rica (aqui em Londrina) achando o Titanic o melhor filme de todos os tempos, tenho vergonha de ter pensado isso. O tempo mostrou o quanto esse filme não mereceu tantos oscars. Avatar eu já nem assisti para não correr o risco de cometer o mesmo erro. Não se pode produzir uma obra-prima por semana ou por mês, esse talvez seja o grande mal da chamada Indústria Cultural. Sempre tem de haver um novo Michael Jackson, uma nova Madona, um novo Cazuza e assim por diante. Os Histéricos pela novidade acabam vivendo do impacto e do estrondo de produções cada vez mais vazias. Ficam culturalmente mais infantilizados, vão lentamente virando ineptos para a sensibilidade da arte e da vida.

Vou continuar escrevendo aqui. Escreverei até como uma forma de combate a esse bando de ignorantes-pretensiosos que acham-se a cereja do bolo e arrogam-se a títulos e posições imerecidas. Eu posso estar posando de ranzinza, mas me escandaliza ver como tem gente que se acha apto, pronto, certo e assim ao infinito. Me orgulho de ter consciência da minha insignificância e mediocridade (é o clássico "me orgulho da minha humildade"), sei que de tudo que fiz e produzi até hoje quase tudo é pueril, banal e sem a menor relevância a não ser pra mim mesmo. Os elogios quando aparecem são ótimos, adoro recebê-los, é delicioso evidentemente, mas não me convencem facilmente. Sou uma fraude e quase todo mundo é também.

Devo continuar escrevendo, mas sempre evocando os grandes e verdadeiros merecedores de atenção, em um disciplinado exercício de autoapequenamento, escrevo para ver mais claramente meus limites. Devemos sobretudo nos ocupar em conhecer os grandes escritores, músicos e todos os outros artístas, como uma vez ouvi Antônio Abujamra dizer em uma palestra, não dá para ler tudo, leia os clássicos. Na arte desses gigantes vê-se refletida a sombra de toda a humanidade, pois como dizia Pessoa ou Borges (não lembro): "o homem é maior que o cidadão, não há estado que valha Shakespeare"

M.U.C.C.

quinta-feira, 3 de março de 2011

A densidade das palavras

Quantas letras fazem uma canoa? Quantas palavras são necessárias para se erigir uma ponte que me tire da solidão do meu mim? Longos discursos não duram mais do que o tempo de secarem as lágrimas que provocaram. Grandes sermões não geram mais do que arrepios. Há, entretanto, palavras que ao entrar por nossos dutos auditivos parecem cruzar órgãos, tecidos e entranhas, são decantadas pelo tempo e viram tatuagens em nossos ossos. Continuarão falantes mesmo quando só os ossos restarem. Que se pode fazer com uma palavra? Qual o poder de nossas línguas? Todo o mistério desses seres falantes que somos não está nos códigos que trocamos, mas no que trocamos através dos códigos. A vida é presente, já houve vida e também haverá, mas o que vive é apenas o presente. O lindo é que este presente vem embrulhado nos belos tecidos e nos elegantes laços da linguagem.

M.U.C.C.

terça-feira, 1 de março de 2011

três instâncias do ser

Somos seres complexos e com uma capacidade racional menor do que a complexidade do mundo que nos envolve. Mas se me permite tomar certo risco, meu improvável leitor, gostaria de me dedicar a essa nossa complexidade. Sem a menor pretensão de estar falando a verdade, ou sendo definitivo, ou dizendo coisas importantes, gostaria de pensar que temos três dimensões. Poderia dizer que são quatro, ou nove, mas três é mais elegante, soa cabalístico.Temos uma dimensão aparente, todos que me conhecem poderiam me descrever rapidamente com grande semelhança entre as descrições. Temos uma instância aparente também mas disfarsável. Minha barriga não é disfarçável, entra na primeira categoria, mas muitos defeitos que tenho sei disfarçar quando quero. Porém nada se disfarça para sempre. Não há chicletes que possa conter um mal hálito quando esse é crônico, há quem prefira chamar de halitose, pode? Não há sorriso que disfarce a maldade e a indiferença. Não há timidez que esconda o talento ou a beleza para sempre.

Mas há ainda uma terceira dimensão de nosso ser. Costumo pensar que somos como cebolas, ou seja, um amontoado de camadas que se forem tiradas não sobra nada. Somos um amontoado de camadas. Mas o legal nisso é que a sobreposição específica das camadas, que acontece em cada um, produz um efeito mágico de singularidade. Esta dimensão da vida tem poderosas ventosas, se você chega a conhecer alguém neste nível, cuidado! É provável que fique grudado. Não há como amar alguém superficialmente e não é possível conhecer verdadeiramente alguém sem se deixar grudar um pouco por ela. Não há como viver de fato sem estar grudado a muitas ventosas, não há também como não sofrer um pouco com isso. Mas é assim que chegamos um pouco mais perto do oceano abissal que se chama Além-de-mim.

M.U.C.C.

Crossing Deadlines

Há um mágico momento em que as direções tornam-se definitivas. Fico pensando se ainda poderia deixar de ser professor para me tornar outra coisa completamente diferente, talvez? Mas se sim não por muito tempo. Chega uma hora em que as coisas ocupam tanto espaço dentro de si que passam a não ocupar mais espaço e sim ser parte dele. Será que poderia deixar de ser um historiador? Não uso a palavra para provocar um título, mas para me referir a minha relação laboral com o tema. Será que poderia me tornar totalmente desinteressado por questões filosóficas, estéticas, epistemológicas? Não sei, mas me parece que já passei da deadline neste campo. Eu já sou um pouco tudo isso.
De olhos fechados vejo toda uma série de posições, decisões, escolhas e tantas outras coisas que podem ser revertidas, ou não. Para a quase totalidade de nossas iniciativas as deadlines são longínquas em alguns casos possivelmente nem existam. Mas há uma deadline para tudo o que nos sustenta existencialmente. As bailarinas tem um curto momento para escolherem ser bailarinas, ou escolherem por elas, não dá para virar Ana Botafogo depois que já é Queen Latifah. Se a vida nos oferece muitas oportunidades, na medida em que passa o tempo se não escolhemos as oportunidades são elas que passam a nos escolher. ma criança muito nova ao mudar de país pode muito bem passar a ser como os do novo mundo que encontra, mas há um momento em que cruzamos uma deadline e não somos mais capazes de trocar de nacionalidade.
Passar a deadline não é necessariamente ruim, pode ser muito bom. Depende da avaliação que fazemos da escolha inicial.

M.U.C.C.

Meus headfones

Escondo-me do mundo atrás dos headfones. Pois são meus ouvidos que me prendem ao mundo, os olhos não. Nem o cheiro, nem o gosto, nem o tato. Meus ouvidos mandam em mim. Leio e escrevo com eles. Os indianos dizem, se não me engano, que o mundo nasceu de um som, faz sentido sem dúvida. No Gênese lê-se: "e Disse Deus"...um som novamente. A vida é uma espécie de experiência acústica neste sentido, não me admiraria se algum físico chegasse a conclusão que os elétrons dançam ao invés de girar. Ou ainda que os planetas valseiam em um grande salão cósmico ao invés de cumprir órbitas elípticas matematicamente determinadas. Acho que foi isso que Kubrick quis dizer com o Danúbio Azul, porque não. As crianças quando nascem bradam, manifestam-se emitindo estridentes ondas sonoras neste universal rito de passagem.

Os meus headfones são como escudos, quando quero me esconder os visto rapidamente.  As buzinas, os camelôs, os anunciantes das lojas são sempre tão tão abusados, não pedem licença para usar meus tímpanos. Sonho com uma cidade em que os ônibus terão som de contra-baixos e as vans cellos, os carros serão as violas e as motos os violinos. Os motoboys serão spallas de uma orquestra domada pela civilidade dos sons. Um dia alguém quem sabe provará que uma paixão ou um amor é uma espécie de acorde, ondas sonoras vibrando em harmonia. Mostrarão que nossas glândulas, hoje tidas como as patroas da alma, são regidas em microtons e dissonâncias. O câncer quem sabe seja um desafino trágico na execução de uma peça curta.

Bom mesmo é quando a vida não precisa de headfones, quando não é preciso recorrer à artificialidades, quando o som real é mesmo o que se quer ouvir. Me parece que conhecer realmente alguém é conhecer suas vozes. Ninguém tem uma única voz, temos várias. Algumas são muito secretas, talvez algumas só nós mesmos conheçamos. De repente de dentro de uma mulher forte e determinada pode se ouvir o som de uma menininha franzina. Isso é uma experiência de conhecimento. Ver um homem já barbado se deixar desarticular e desfazer-se em uma voz pequena e insegura. |Todos estranhamos o som de nossas vozes quando a ouvimos gravada, não é ela que ouvimos ou é mas sem maquiagens. Você já reparou como as crianças ficam amigas umas das outras rapidamente é porque ainda não inventaram muitas vozes e assim se dão a conhecer mais rapidamente. Se é mesmo verdade que começamos mesmo pelo som, o que será do silêncio? De certa forma acredito que a saudade é uma forma de silêncio.

M.U.C.C.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A história das coisas

Já foi uma frase bem esperta,
virou olho e olhar.

Cresceu noite de chuva fina
para só depois de moça tornar-se mais discreta.

Depois de feita mulher
saiu da vida e virou sonho.

Virou sonho de poeta
e pesadelo de profeta.

Agora diz que não sabe o que esperar da vida,
não sabe se faz certo em continuar vivendo.

Não sabe do dia de amanhã,
não sabe se não conseguirá emprego.

Não sabe se arranja marido,
se enfrenta o perigo,

e qual o problema em não saber?


M.U.C.C.
Há momentos em que se tem a oportunidade de escolher os pensamentos. Eu pelo menos me sinto assim. Uma palavra pode ser tão dolorida, tão desconfortável, tão indigesta que põe parágrafos a perder. As vezes põe mais. As memórias, as saudades as incompletudes calejam e enchem de rugas a viga mestra da alma. Sua ação é lenta, cumulativa, cria estalactites de desgosto, nos  retorce com arbusto do serrado.  Esse aguilhão peçonhento faz doer, lateja, irrita. Mas há a opção de escolher um outro cômodo da mente. Existe sempre um outro suspiro guardado no peito, uma porta que se abre para uma varanda sombreada.

M.U.C.C.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O cochilo de Pitágoras

Fecho as janelas da sala para ver se abro as do pensamento, sem querer trocadilhar. Depois de quanto tempo delas fechadas posso me sentir sozinho? Depois de quanto tempo sozinho devo encostar os dedos neste teclado? Hoje entre a distância de uma e outra guia da calçada troquei umas palavras com um senhor de sorriso fácil, que me ensinava sobre o tempo e a chuva e o arco-íris. Depois de quantos travessões de diálogo posso considerar o contato como conversa? Pergunto-me isso, porque não sabia se ao completar a travessia devia me despedir ou não do gentil senhor. Não sei se conversamos.

Me perdoe meu improvável leitor com as minúcias que lhe imponho, mas me interessa perceber este ponto cego  da matemática. É a ruína do mundo de Pitágoras. Há uma distância não numérica entre uma troca de palavras e uma conversa, entre um grande grupo de pessoas e uma multidão. Há um intervalo infracionavelmente sólido entre o conhecimento e a consciência, entre mente e o cérebro, entre a inteligência e a sabedoria.

Como é possível mensurar a distância de um sorriso apaixonado para um lascivo? Como perceber se em um rápido abrir e fechar de um único olho sou alvo de um flerte ou devo gritar "truco"! Há um hiato entre o um e o dois que não se resolve com zeros e vírgulas. Existirá sempre um lugar que não se deixa alcançar pelos números e outro ainda mais distante que nem as palavras podem traduzir. Este é o horizonte do artista, ele salta, corre, se esconde, espreita e sempre insiste na esperança de um dia, por uma não-fração de um não-momento, resvalar neste lugar e trazer para o mundo do inteligível o que está em todos e não se deixa compartilhar. Fazer tudo o que só é próprio soar universal.

M.U.C.C.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Sob a lua de Gothan City

A lua hoje está tímida, esconde-se entre nuvens. Timidez que se injustifica, ninguém parece percebe-la. Um moço passa ligeiro levando pizza para a sexta-feira que termina. Uma senhora se aconselha com a balconista, são os calos e os sapatos, você sabe. Outro moço olha os carros, olha pra mim e me cumprimenta, orgulha-se do Ronaldo e o leva cingido no peito. Os ricos passaram de carro e os muito ricos ficaram de passar. Passamos uns pelos outros, o moço da pizza, a senhora dos calos, o rapaz dos carros e os ricos, mas só passamos.

Uma moça ou mulher come um belo prato, parece feliz. De que mais se faz a vida se não de felicidade e um belo prato? Puxei a cadeira e assunto. Não pareceu constranger-se, nem eu. Falamos de tudo menos de felicidade e belos pratos. Olhamos para lua, parecia ainda tímida. Timidez que se injustifica, não é ela que ontem estava nua?

Lembrei da pizza. Dos calos, dos carros e seus donos. Para onde foram todos? Existem eles ainda? Melhor voltar para casa. De que mais se faz a cidade?

M.U.C.C.