quarta-feira, 30 de março de 2011

Dos Milagres

Há, houve ou haverá um momento em que aquele redundante perfume de sempre volta, voltou ou voltará a perfumar. E mesmo que ele nunca tenha deixado de perfumar, nem se quer por um instante, mesmo assim, só então voltará a ser perfume. Mesmo ao percorrer aquele percurso de sempre é possível, com um pouco de sorte, perder-se. É possível vivê-lo como se o estreasse. Somos seres magicamente lindos, inteligentes e complexos, mas vivemos constantemente exilados desta magia. Vivemos constantemente sob o embotamento das previsibilidades produzidas pela mente, somos cativos de causas e efeitos que nós mesmos produzimos e que nos parecem sempre funcionar. A vida assim tem o tamanho de nós mesmos e o fim desta série lógica é o tédio, o enfado e o nihil. Mas há, houve ou haverá o instante mágico em que nos percebemos de fato. Somos novamente capazes de cheirar o que não parecia ter cheiro, tocar o que não tinha textura, amar. Não sei explicar exatamente este fenômeno, talvez não seja nem o caso, de tão sutil e delicado talvez só seja captável pela intuição. Uma frase inúmeras vezes lida que se ouve como inédita, os olhos que passam de repente a ter um olhar, o gole d'água. Não sei, mas sempre vivi momentos assim, desde muito pequeno. Vez ou outra sentia o mundo girarando em uma rotação diferente, as palavras que dizia me soavam externas, exóticas e pouco familiares, eram momentos de autoestranhamento. Nunca consegui explicar, não sei se é um defeito, doença, alteração hormonal. Mas costumo chamar de milagre.

M.U.C.C.

domingo, 27 de março de 2011

elela

Ela quer e ele parece que também. Ele ainda não fez mais do que se entregar ao trabalho e a dureza da vida, ainda não teve a oportunidade de vivê-la levando os sonhos tão à sério como ela gostaria. Ela vive de levar os sonhos à serio, e lhe parece estranho ter de viver assim com os pés tão fincados à realidade. Ele veste-se demais, ela diz, perfuma-se de menos, ele não interessa-se pelo estar vestido e pelo tipo do perfume. Ele quer é despi-la e sorver o cheiro, de resto...Ela não sabe como poderá compartilhá-lo com os olhares dos outros, não sabe como fazê-lo parte de seu mundo de sempre muitos sonhos e dos dilemas gerados por suas muitas interpretações.
Elela são assim o arquétipo infinitamente repetido do homem e da mulher. São como a bailarina apaixonada pelo soldadinho de chumbo, a princesa que se desencastela por amor ao plebeu, a dama e o vagabundo comendo spaguetti ao luar. Não sei se nos apaixonamos pelo diferente, não sei se os opostos se atraem. Não sei se a dama se separou do vagabundo quando percebeu que ele era vagabundo mesmo, não sei se a bailarinha ficou viúva quando o soldadinho foi para a guerra. Penso que há uma cumplicidade necessária aos relacionamentos que se alimenta de muitos pontos comuns, existem momentos em que é preciso jogar no mesmo time e levantar a mesma bandeira. Mas eles sorriem tão lindamente no retrato.

M.U.C.C.

terça-feira, 22 de março de 2011

SIlêncios

Estranha-me ter de chamar por silêncio tão grande variedade de coisas.  O Cristo permaneceu em silêncio. Silêncio suficiente e pedagógico. Não rebateu acusações, não se deixou afetar. Quando falou disse apenas: Tú o dizes. Não era preciso dizer o que o universo mesmo dizia. Neste caso cabe o dito, quem se justifica se condena, evidentemente vivido ao contrário. O silêncio também se presta a eloquência.
Há os que só param de falar quando se cansam. Em geral, quando isso acontece já é tarde. Já se falou mais do que o cabível, mais do que a prudência aconselha. Perdem de viver o que de melhor o silêncio tem  a oferecer. Quem silencia permite à mente respirar, permite-se sorver melhor do presente. E ninguém pode se desculpar dizendo que não se cala por ignorância, porque antes de tudo o silêncio é uma linguagem do corpo.  O sono certamente é sua manifestação mais exemplar. É preciso calar-se completamente para dormir, calar as vozes mais inaudíveis, calar os argumentos da mente e os debates da consciência. E só neste estado de silêncio nascem os sonhos, poesia que intercala os longos capítulos em prosa do dia-a-dia.
Hoje passei o dia falando, dever da profissão e de cordialidade com os amigos, mas no fundo permaneci em silêncio. O silêncio da alma. Aquela voz que sonha, projeta, ama, pulsa, se revolta, se insurge, os vocativos que proferimos em nossa própria direção permaneceram todos calados. Greve geral dos muitos eus que me compõem. Eles estão cansados dos meus mesmos erros, estão cansados de ter de pagar as faturas dos compromissos que assumo. E talvez por isso, e até por ressentimento, passaram o dia quietos. Não me deram nem se quer satisfações. Acusando o golpe e consentindo a culpa, me calei. Também.

M.U.C.C.

quinta-feira, 17 de março de 2011

A ressaca de Bukowski

Eu não me considero uma pessoa conservadora, nem no sentido ideológico nem no sentido comportamental. Tive sempre em minha, ainda curta e medíocre, biografia uma pitada de transgressão, inconformismo e um apreço pelas marginalidades estéticas. Se não o fora, não teria cursado História, para o latente escândalo dos que me cercavam. Teria feito direito, ADM, ou outras óbvias opções que me assediavam. Exatamente por ter esse gosto por deixar o cabelo descabelar, a roupa furar, a barba crescer (a barriga cresceu movida por outras forças) estou cada vez mais seduzido pelos conservadores. Não os compro totalmente, não me sinto um deles, não consigo aliás me sentir parte de nenhum bloco ideológico monolítico. Seria como virar uma estátua. Mas eles é que passaram a representar a rebeldia dentro do campo cultural brasileiro. A cultura brasileira abraçou uma sofisticação de verniz, um apreço pelo popular (mantido à distância evidentemente), uma vanguardice comportada fazendo tudo soar mais falso que sorriso de Miss. O futuro-natimorto-tropipilantra blog da Bethânia é, neste sentido, paradigmático.
Exatamente por esta náusea que se turba em meus ventres cotidianamente, resolvi falar do Paulo Briguet. Gosto do briguet porque além de escrever muito bem, tem a coragem de ser um fora-de-moda e dizer coisas que soarão cafona nos meios em que transita. Ele é um outsider do eixo Marx-foucault-GLS-canabis-etc....e isso já é considerado delito nos meios culturais brasileiros atuais. O que traz uma nódoa transgressora aos seus textos. E a arte deve ser sempre transgressora! Não penso exagerar sinceramente. Discordo de Briguet na afirmação de que não deva haver verba pública para a cultura. (leia aqui o artigo em questão) As favelas precisam de bibliotecas e projetos que as tornem realmente úteis, precisam de espaços para teatro, cinema e rádio. Não só as favelas, mas entenda a figura de linguagem que proponho. Mas também acho que espetáculo não deve ter verba pública. Artistas do mundo inteiro, se virem para tornar-se viáveis. Se há capital valorizado nestes dias é o da espetacularidade. Sempre houve arte de vanguarda, marginal ....e o escambau, sem que tivesse que passar o chapéu diante da classe política. Aliás, quem é marginal mesmo, vanguarda mesmo, muderninho mesmo, deveria ter asco de verba pública. Deveriam se sentir comprados pelas forças propagandísticas do estado. Quem diria que um autor católico pudesse soar provocador e Charles Bokowski soar obediente!

M.U.C.C.

Felicidade

Sempre seguindo...(com bom twitteiro)...você , minha felicidade. Você é sempre tão tímida, tão privada, tão clandestina que me dá um enorme trabalho ter de correr ao teu encalço. Farejo-te por todos os longos dias de nossa distância. Analiso pegadas para ver se seriam realmente tuas, há sempre o perigo de falsas alegrias. Sei que nossa distância é quase sempre minha culpa, sei que não sei me fazer leve, não sei me alegrar com o que sou, mas sei também que andas ocupada a fazer rir muitas crianças de todas as idades, e por isso desculpo a sua ausência. Mas sem querer me alongar, quero apenas dizer que estou te escrevendo para te dizer que quero muito te encontrar de novo, quero muito te encontrar mais. Tenho sempre muita saudade. Quero passar um fim de semana completo em tua companhia, quem sabe até, sem querer lhe tomar demasiadamente seu exíguo tempo, poder desfrutar de sua companhia por toda uma temporada. Mas caso contrário, te entenderei. Continuarei te perseguindo, não serei daqueles que se tornam ressentidos pela sua ausência. E se na pior das hipóteses nunca mais te encontrar...bem, então te encontro na saída.

M.U.C.C.

terça-feira, 15 de março de 2011

sapatos de dorothy





Vermelhas carnes de vermelho pulsar,

de tão vermelhas vermelham a vida,

vermelham bochechas anaeróbias de amar.



Vermelho como os sapatos de Dorothy.



Vi vermelho nos olhos,

crianças sem colos,

não era show, era choro.



Choro de vermelha goela, sofridas princesas sem dote.



De vermelho se pintou o amor,

mas quase sempre de vermelho a rua também esta pintada,

de um vermelho que não vale risada,

de um vermelho-quase-preto e vingador.



Se há brancos, amarelos, pretos ou N.D.A. por dentro todos somos vermelhos.



M.U.C.C.

domingo, 13 de março de 2011

Um albatroz chamado livro

Abrem-se suas asas e começa a jornada (soou como Fiori Gigliotti). Seu bate-asas constante, o renovar das próximas folhas, cria-se um novo mundo a cada movimento. De mundo em mundo segue o vôo, em silêncio. Lá no alto pode-se ter o prazer do nada ouvir, a não ser as vozes que brotam do interior da nobre ave e como são muitas as vozes e muito distintos seus ruídos não há tempo de se sentir só, nem doente, nem ao menos triste. Suas garras nos prendem tão firmes que não há como temer o elevar-se do chão, seu vôo tem o frescor do estar em férias, suas manobras são confortáveis e hospitaleiras como um bangalô à beira-mar. Às  vezes à hora das obrigações do dia, às vezes o sono, que nasce dessas mesmas obrigações, ou ainda uma ruidosa criança nos faz cair de lá do alto. E como dói. Ter de botar os pés na vida novamente, chamar as coisas pelos seus nomes mais óbvios, apanhar um camisa amarrotada no chão, verter suor e olhar o relógio. A ave pousa em um galho e nos segue olhando pelo tempo que precisarmos. Até que possamos lhe abrir as asas novamente para voar.

M.U.C.C.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Caraminholas

Minha testa e minhas mãos tem uma afinidade terrível. Não se pode vacilar por um minuto que já estão se alisando. Desta fricção são produzidas centenas de caraminholas, que por sua vez são muito férteis e procriam atingindo índices de fazer inveja aos coelhos e aos hambsters, sei tudo de Hambsters depois que minha filha virou criadora e fornecedora do petshop. As caraminholas são viscosas e contagiosas, infectam pensamentos coerentes e honestos e tem um poder de influência e controle de fazer inveja aos sindicatos. As caraminholas são facilmente atacadas no começo, quem já não se pegou dizendo: "isso é besteira da minha cabeça". Nesse momento glorioso pode-se ver uma caraminhola devidamente desmascarada e isolada do convívio neuro-social (ou seria neurossocial na nova norma ortográfica?). Mas elas tem ótimos disfarces, as mais letais tem a capacidade de permanecer em estágio de incubação por anos e de repente afloram já interpretadas como se fossem pensamentos inofensivos, fidedignos e livres de qualquer censura. Está feito o estrago. Saibam que as caraminholas são grandes organizadoras de motins e agitações maldosas. Estou em desespero, minha testa e minhas mãos não tem se largado ultimamente.

M.U.C.C.

quarta-feira, 9 de março de 2011

utopias do coração

Este texto dialoga com o que eu acabei de escrever no outro blog. O outro é mais pretensioso esse é mais debochado.

De todas as formas de utopias existentes a mais forte é sem dúvida a dos relacionamentos. O príncipe encantado ou a princesa aprisionada na mais alta torre é uma idéia tão violenta e arbitrária como alguém querer fazer você tomar por verdade algo não faz sentido. Os homens sonham mais com utopias físicas, e os cirurgiões plásticos e os sites de pornografia não me deixam mentir. A utopia relacional masculina é antes de tudo uma utopia sexual. Eles querem, notem que falo como the não jogathe nethe time*, a visão de uma mulher ideal, plásticamente ideal, ou siliconicamente ideal, são as formas que valem não os conteúdos, ao menos como regra geral. Muitos homens são capazes de suportar o insuportável para saciar a ânsia da utopia física. Convivem com pessoas vazias, chatas, superficiais em nome da fruição plástica. Pagam o mais alto aluguel para viver em um palácio de curvas niemeireanas. O pior é quando as primeiras infiltrações começam a aparecer no grande castelo, haja reboco e massa corrida!

As mulheres, bem as mulheres, são ainda mais severas na utopia. Elas realmente prestavam muita atenção nas histórias que ouviam antes de dormir. Deve ser alguma propriedade da cor rosa que tanto abunda em seus aposentos infantis. O pior não é sonharem com o príncipe encantado vindo em um belo cavalo e as salvando do terrível dragão, isso até dá pra resolver em dias de inflação controlada o dragão anda sonolento e os carros mais acessíveis. Também não são os fortes e heróicos valores morais, isso da pra fingir por tempo suficiente até que venha o casamento. O problema maior na utopia feminina é o "e viveram felizes para sempre". Esse é um ponto que parece difícil de demovê-las, é ai que a utopia pega.

O que devemos fazer, contar histórias de separação ou celibato aos nossos filhos? As escolas devem oferecer aulas como: A Bela Adormecida: os fatos por trás do mito? Não há porque esquecermos nossas utopias, já disseram que elas nos fazem andar. Esse é o ponto, as utopias podem me ajudar a querer ser mais príncipe encantado, ou mais juliana Paes sei lá, me põem em movimento. Mas não devem ser usadas por mim para por os outros em movimento, eu acho!


*leia o som do th como no inglês botando a língua entre os dentes (essa eu aprendi com o Lobão, que escreve assim quando reporta falas do Cazuza na sua autobiografia)

M.U.C.C.

Os grandes e os pequenos.

Se eu tivesse alguma vergonha na cara desativava este blog de uma vez por todas. Não sei escrever, isso não é show de autoflagelação artística, e chego quase a me sentir mal de ocupar seu tempo improvável leitor. Cometo erros ortográfricos, minha pontuação muitas vezes deixa muito a desejar, me atrapalho com ênclises e mesóclises e o diabo. Sem falar em aspéctos mais profundos como estilo, ritmo e fluência. Sou metido a tocar violão também, pois nesse carnaval tive a oportunidade de ver o grande João Alexandre tocando e saí do espetáculo com o dever de nunca mais encostar a mão no meu violão. Dever esse já devidamente desobedecido é claro.

Há muita beleza e talento no mundo, tenho a impressão de que já há arte suficiente para todos. Não precisamos de novos escritores, leiamos Ésquilo, Cícero, Virgílio, Rabelais, Machado de Assis, Dostoievsky, literatura americana, latino-americana, russa, escandinava, tcheca. Deveríamos ouvir décadas de Villa-lobos, Debussy, Bach até nos darmos ao direito de quem sabe cometer a pachora de escutar um disco de Rock'n Roll. Não deveríamos ter novas ideias, usemos a dos antigos filósofos, não há de faltar conceito, reflexão, neologismos e tal. Deveríamos decretar por pelo menos dez anos um recesso artístico mundial, descobriríamos um oceano de novidades hakeadas de museus, arquivos, antiquários e mercados de pulgas.

Nem sempre se tem algo relevante entre as novidades, vou além é mais provável que não tenha. Fico admirado com as locadoras de filmes, cobram mais caro pelos filmes mais novos. A mim não faz o menor sentido. Todos os filmes antigos passam por uma seleção quase darwiniana exercida pela crítica, pela popularidade e pelo próprio tempo. É óbvio que entre os filmes antigos só restam nas prateleiras os verdadeiramente relevantes, entretanto entre as novidades encontra-se todo o tipo de lançamento. Não precisa ser um gênio para perceber que é muito maior a chance de se encontrar um filme bom entre os mais velhos do que ente os lançamentos. Os melhores são mais baratos e os piores mais caros, não dá pra entender! Talvez seja por isso que as locadoras estão falindo, apostaram sempre em um público ansioso por novidades que agora as estão trocando pelos piratas que são mais ágeis e baratos.

Esse apego histérico pela novidade só tem servido para produzir seres cada vez mais imbecis. O impacto inicial das coisas nem sempre se mantém depois da seleção do tempo. Me lembro de sair da sala do saudoso  Cine Vila Rica (aqui em Londrina) achando o Titanic o melhor filme de todos os tempos, tenho vergonha de ter pensado isso. O tempo mostrou o quanto esse filme não mereceu tantos oscars. Avatar eu já nem assisti para não correr o risco de cometer o mesmo erro. Não se pode produzir uma obra-prima por semana ou por mês, esse talvez seja o grande mal da chamada Indústria Cultural. Sempre tem de haver um novo Michael Jackson, uma nova Madona, um novo Cazuza e assim por diante. Os Histéricos pela novidade acabam vivendo do impacto e do estrondo de produções cada vez mais vazias. Ficam culturalmente mais infantilizados, vão lentamente virando ineptos para a sensibilidade da arte e da vida.

Vou continuar escrevendo aqui. Escreverei até como uma forma de combate a esse bando de ignorantes-pretensiosos que acham-se a cereja do bolo e arrogam-se a títulos e posições imerecidas. Eu posso estar posando de ranzinza, mas me escandaliza ver como tem gente que se acha apto, pronto, certo e assim ao infinito. Me orgulho de ter consciência da minha insignificância e mediocridade (é o clássico "me orgulho da minha humildade"), sei que de tudo que fiz e produzi até hoje quase tudo é pueril, banal e sem a menor relevância a não ser pra mim mesmo. Os elogios quando aparecem são ótimos, adoro recebê-los, é delicioso evidentemente, mas não me convencem facilmente. Sou uma fraude e quase todo mundo é também.

Devo continuar escrevendo, mas sempre evocando os grandes e verdadeiros merecedores de atenção, em um disciplinado exercício de autoapequenamento, escrevo para ver mais claramente meus limites. Devemos sobretudo nos ocupar em conhecer os grandes escritores, músicos e todos os outros artístas, como uma vez ouvi Antônio Abujamra dizer em uma palestra, não dá para ler tudo, leia os clássicos. Na arte desses gigantes vê-se refletida a sombra de toda a humanidade, pois como dizia Pessoa ou Borges (não lembro): "o homem é maior que o cidadão, não há estado que valha Shakespeare"

M.U.C.C.

quinta-feira, 3 de março de 2011

A densidade das palavras

Quantas letras fazem uma canoa? Quantas palavras são necessárias para se erigir uma ponte que me tire da solidão do meu mim? Longos discursos não duram mais do que o tempo de secarem as lágrimas que provocaram. Grandes sermões não geram mais do que arrepios. Há, entretanto, palavras que ao entrar por nossos dutos auditivos parecem cruzar órgãos, tecidos e entranhas, são decantadas pelo tempo e viram tatuagens em nossos ossos. Continuarão falantes mesmo quando só os ossos restarem. Que se pode fazer com uma palavra? Qual o poder de nossas línguas? Todo o mistério desses seres falantes que somos não está nos códigos que trocamos, mas no que trocamos através dos códigos. A vida é presente, já houve vida e também haverá, mas o que vive é apenas o presente. O lindo é que este presente vem embrulhado nos belos tecidos e nos elegantes laços da linguagem.

M.U.C.C.

terça-feira, 1 de março de 2011

três instâncias do ser

Somos seres complexos e com uma capacidade racional menor do que a complexidade do mundo que nos envolve. Mas se me permite tomar certo risco, meu improvável leitor, gostaria de me dedicar a essa nossa complexidade. Sem a menor pretensão de estar falando a verdade, ou sendo definitivo, ou dizendo coisas importantes, gostaria de pensar que temos três dimensões. Poderia dizer que são quatro, ou nove, mas três é mais elegante, soa cabalístico.Temos uma dimensão aparente, todos que me conhecem poderiam me descrever rapidamente com grande semelhança entre as descrições. Temos uma instância aparente também mas disfarsável. Minha barriga não é disfarçável, entra na primeira categoria, mas muitos defeitos que tenho sei disfarçar quando quero. Porém nada se disfarça para sempre. Não há chicletes que possa conter um mal hálito quando esse é crônico, há quem prefira chamar de halitose, pode? Não há sorriso que disfarce a maldade e a indiferença. Não há timidez que esconda o talento ou a beleza para sempre.

Mas há ainda uma terceira dimensão de nosso ser. Costumo pensar que somos como cebolas, ou seja, um amontoado de camadas que se forem tiradas não sobra nada. Somos um amontoado de camadas. Mas o legal nisso é que a sobreposição específica das camadas, que acontece em cada um, produz um efeito mágico de singularidade. Esta dimensão da vida tem poderosas ventosas, se você chega a conhecer alguém neste nível, cuidado! É provável que fique grudado. Não há como amar alguém superficialmente e não é possível conhecer verdadeiramente alguém sem se deixar grudar um pouco por ela. Não há como viver de fato sem estar grudado a muitas ventosas, não há também como não sofrer um pouco com isso. Mas é assim que chegamos um pouco mais perto do oceano abissal que se chama Além-de-mim.

M.U.C.C.

Crossing Deadlines

Há um mágico momento em que as direções tornam-se definitivas. Fico pensando se ainda poderia deixar de ser professor para me tornar outra coisa completamente diferente, talvez? Mas se sim não por muito tempo. Chega uma hora em que as coisas ocupam tanto espaço dentro de si que passam a não ocupar mais espaço e sim ser parte dele. Será que poderia deixar de ser um historiador? Não uso a palavra para provocar um título, mas para me referir a minha relação laboral com o tema. Será que poderia me tornar totalmente desinteressado por questões filosóficas, estéticas, epistemológicas? Não sei, mas me parece que já passei da deadline neste campo. Eu já sou um pouco tudo isso.
De olhos fechados vejo toda uma série de posições, decisões, escolhas e tantas outras coisas que podem ser revertidas, ou não. Para a quase totalidade de nossas iniciativas as deadlines são longínquas em alguns casos possivelmente nem existam. Mas há uma deadline para tudo o que nos sustenta existencialmente. As bailarinas tem um curto momento para escolherem ser bailarinas, ou escolherem por elas, não dá para virar Ana Botafogo depois que já é Queen Latifah. Se a vida nos oferece muitas oportunidades, na medida em que passa o tempo se não escolhemos as oportunidades são elas que passam a nos escolher. ma criança muito nova ao mudar de país pode muito bem passar a ser como os do novo mundo que encontra, mas há um momento em que cruzamos uma deadline e não somos mais capazes de trocar de nacionalidade.
Passar a deadline não é necessariamente ruim, pode ser muito bom. Depende da avaliação que fazemos da escolha inicial.

M.U.C.C.

Meus headfones

Escondo-me do mundo atrás dos headfones. Pois são meus ouvidos que me prendem ao mundo, os olhos não. Nem o cheiro, nem o gosto, nem o tato. Meus ouvidos mandam em mim. Leio e escrevo com eles. Os indianos dizem, se não me engano, que o mundo nasceu de um som, faz sentido sem dúvida. No Gênese lê-se: "e Disse Deus"...um som novamente. A vida é uma espécie de experiência acústica neste sentido, não me admiraria se algum físico chegasse a conclusão que os elétrons dançam ao invés de girar. Ou ainda que os planetas valseiam em um grande salão cósmico ao invés de cumprir órbitas elípticas matematicamente determinadas. Acho que foi isso que Kubrick quis dizer com o Danúbio Azul, porque não. As crianças quando nascem bradam, manifestam-se emitindo estridentes ondas sonoras neste universal rito de passagem.

Os meus headfones são como escudos, quando quero me esconder os visto rapidamente.  As buzinas, os camelôs, os anunciantes das lojas são sempre tão tão abusados, não pedem licença para usar meus tímpanos. Sonho com uma cidade em que os ônibus terão som de contra-baixos e as vans cellos, os carros serão as violas e as motos os violinos. Os motoboys serão spallas de uma orquestra domada pela civilidade dos sons. Um dia alguém quem sabe provará que uma paixão ou um amor é uma espécie de acorde, ondas sonoras vibrando em harmonia. Mostrarão que nossas glândulas, hoje tidas como as patroas da alma, são regidas em microtons e dissonâncias. O câncer quem sabe seja um desafino trágico na execução de uma peça curta.

Bom mesmo é quando a vida não precisa de headfones, quando não é preciso recorrer à artificialidades, quando o som real é mesmo o que se quer ouvir. Me parece que conhecer realmente alguém é conhecer suas vozes. Ninguém tem uma única voz, temos várias. Algumas são muito secretas, talvez algumas só nós mesmos conheçamos. De repente de dentro de uma mulher forte e determinada pode se ouvir o som de uma menininha franzina. Isso é uma experiência de conhecimento. Ver um homem já barbado se deixar desarticular e desfazer-se em uma voz pequena e insegura. |Todos estranhamos o som de nossas vozes quando a ouvimos gravada, não é ela que ouvimos ou é mas sem maquiagens. Você já reparou como as crianças ficam amigas umas das outras rapidamente é porque ainda não inventaram muitas vozes e assim se dão a conhecer mais rapidamente. Se é mesmo verdade que começamos mesmo pelo som, o que será do silêncio? De certa forma acredito que a saudade é uma forma de silêncio.

M.U.C.C.