terça-feira, 26 de abril de 2011

o falso herói

Sorvia o falso cheiro de caramelo e cola ainda sem provar-lhe o gosto e sem ter se desfeito da falsa idéia de uma vida digna. Parado permanecia nosso herói com olhar de pistoleiro de bang-bang e pose de Robert Plant, culpa da lombalgia. Não sabia ainda à esta altura que teria o mesmo fim das bitucas de cigarros que não fumava, das sacolas amarrotadas do mercado ou quem sabe com mais sorte das garrafas Pet. Seu futuro era a eternidade. Ignorando tal desastre, rompia inércias paquidérmico. A ignorância fora até este momento seu mais fiel escudeiro frente a toda dureza de tudo. Mas nem sempre ela funciona e nosso Herói carregava já a algum tempo rugas e sinais de consciência. Seu andar, ah seu andar, mereceria talvez maior atenção do que ora dispomos, mas em síntese pode-se dizer que faziam citação direta a Cervantes e representavam esperança quase em estado bruto. Os braços, que aos poucos passavam a pendular, também podem ser representações em contra-ponto de algo ainda positivo, reforçavam as sugestões deixadas pelas pegadas.

Este falso herói é sábio, é sábio porque é falso ou o contrário. Não se dá ao direito de cuidados, não se entrega a amores. Foi expropriado, se é que ainda se pode usar esta palavra livremente, de suas paixões. Vindo da erudita formação do nú e crú, teve nas dores suas melhores professoras e companheiras. O falso herói manteve do verdadeiro os trejeitos, a casca, o modo de andar. Mas seu conteúdo íntimo, verdadeiro, essencial foi sabiamente subtraído. Este mundo-cão roubou dele seus carroços, seu sumo e sabor. Mas se você acha que este é um herói marginal e derrotado, se pensou se tratar de um anti-herói esteticamente projetado para fazer ode à feiúra, enganou-se. Ele é senhor contemporaneamente. Quer fazer do mundo um ovo sem clara e gema, argumenta que faz mal, só casca presta. Quer nos ver empadas sem azeitonas, bolos sem cerejas. Seus poderes parecem cada vez maiores e seus poderes ilimitados. É como o Big Brother do Orwell, o verdadeiro, só que é burro. Totalmente desprovido de encanto intelectual, mas pasmem, tem dado pro gasto. Manda e desmanda e everybody shakes....

O que faremos? Temeremos? Eu não. Só de sacanagem.



M.U.C.C.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

fotografia

Haverá um dia em que a única coisa que restará desse mundo que conhecemos é uma fotografia. Uma fotografia tirada em um dia qualquer, de uma festa banal quando os salgadinhos já estavam frios e os refrigerantes quentes. Você não sabia, mas estava deixando ali o último registro, o ultimo legado de toda a humanidade que existiu em si. Eu já fui menino, já sorri sem os dentes da frente, já corri da monga, já sonhei ser grande e descobri o amor da minha vida da última semana. Hoje minha filha não tem dentes, eu não tenho muito cabelo. É triste pensar na série lógica de raciocínio que termina quando virarei fotografia. Um dia serei só fotografia. Talvez também por isso escreva aqui, tenho vontade de viver mais um pouco, mesmo que só na memória dos outros. Mas sonhar em ser inesquecível é um surto que não deve tomar conta da cabeça de ninguém, a sede por estar em livros e catálogos só faz surgir Napoleões, Hitlers, Getúlios entre outros. Saibam que o que vai sobrar é provavelmente aquela foto mais ordinária de um dia sem paixão. Por isso quero amar o ordinário. A festinha desanimada, o calor desmilinguante, a frase sem beleza, tudo é vida e tudo vive ainda em mim. É um erro viver a vida com enfado, pense na fotografia. Um dia só haverá fotografia. Somos treinados para querer a glória, os louros, as grandes aventuras, os grandes romances, eu quero a minha vida. Mas a vida será só nascer, crescer, casar, ter filhos e depois morrer, pergunta você, sim, e já não está bom? Não quero deixar que a sombra dos grandes sonhos me faça tratar com desprezo essa vida real. A minha vida do jeito como está já é complexa demais, excitante demais, misteriosa demais, sagrada demais para que eu fique olhando-a com cara feia. Penso muito na morte, já pensei em antecipá-la algumas vezes, mas é bobagem rasteira. Bom mesmo é rir da própria desgraça, rir da própria piada e dar um abraço em quem estiver passando do lado. Bom mesmo foi sofrer tudo o que sofri, e sofro até hoje, e com o tempo ir percebendo a dor diminuir, a cicatriz se concretizar e voltar a ver as cores do dia-dia voltarem ao normal. Elas sempre voltam. Mas penso muito na morte, não com medo nem superstição, mas como um aluno que se apressa em completar a prova na medida que o relógio anda. É preciso sabedoria para não deixar questões em branco sem deixar de dispensar o tempo de reler as questões, reescrevê-las se possível. Sempre gostei de tragédias, mas hoje tive que escrever esse texto positivo. Tive que olhar o copo meio cheio, e ver as coisas pelo seu lado mais bonito. Não se acostumem, improváveis leitores. Só quero poder dizer xis na hora da minha fotografia!

M.U.C.C.

domingo, 3 de abril de 2011

Duas belas manchas

Para um míope a realidade é mais expressionista, ou impressionista dependendo do tamanho do déficit visual, do que para a maioria. O mundo é antes de mais nada uma bela mancha com a qual interagimos, nós os míopes. Ao longo de já não tão pouco tempo de vida, fui aprendendo a usar vários tipos de óculos na sempre inútil tentativa de tornar meu exterior menos mancha, menos caos, menos enigma. Existem óculos-ideologia, óculos-posição social, óculos-ocupação profissional, óculos-família, óculos-óculos, e tantos outros ora aqui engavetados sob minha mesa. Somos então forçados a ver o mundo através desses muitos óculos que escolhemos para usar. Vamos nos notabilizando pela habilidade de trocar de óculos ou de usá-los em sobreposição para tentar achar um melhor foco, tornar o mundo mais nítido. Mas há sempre um momento em que tiramos os óculos e nos deparamos com a mancha que a realidade das coisas se torna para nós. Há este mágico instante em que nos entregamos ternamente aos doces e sedutores lábios da incerteza e da imprecisão. São duas belas manchas que nos abraçam e envolvem e logo partem já deixando saudade. É quando chega o momento de viver conformado com um mundo-mancha, um mundo que flui tão ávido que não se pode delimitar fronteiras. Um mundo em que as cores oscilam, as pernas vacilam, as palavras se rarefazem e tudo é menos certo que provável. Neste mundo não se anda, nada-se. É um mundo sem conceitos, prefeitos, perfeitos e tal. Mas com muitos defeitos, tantos que já nem importam, pois quando se está sem óculos é porque já não se tem a pretensão do acerto. É mundo-mancha pô. Hiato de rotinas, fresta de cortinas e um engasgo das sinápses. Mundo-mancha. Depois disso vem o sono e no outro dia, os óculos.

M.U.C.C.