domingo, 31 de julho de 2011

Diários Austrais: Tango

Difícil tarefa tem aquele que deseja conhecer um outro povo em profundidade. Pois não estará lidando com matéria palpável, nações são edifícios feitos de areia movediça, tijolos de vapor e hastes que se movem como serpentes. Muitos pensadores se esmeraram ao longo dos séculos para tentar encapsular em tubos de ensaio a alma dos povos, das civilizações e das culturas, quase sempre sem sucesso. Hegel dizia existir um volksgeist (espírito do povo), Jung acreditava existir um incosciente coletivo que atravessava quase imperceptivelmente as pessoas, mais contemporaneamente disseram que somos feitos de discurso e, portanto, as identidades coletivas seriam como que estilos discursivos.


Seja qual for o conceito da sua predileção, para mim está claro que se quisermos conhecer alguma sociedade  que não a nossa temos que nos cercar de seus artistas, de suas histórias, de suas honras e suas tragédias. Temos que passar algum tempo ao lado de Kant, Mann, Goethe e Beethoven para começar a intuir o que é esse lugar chamado Alemanha. Sendo assim, quem quer conhecer nossos hermanos argentinos tem que ver/ouvir muito tango. Sei que a Argentina não é só tango como o Brasil não é só samba, mas aquela maravilha jamais seria obra de outro povo. Deve ler Borges com certeza, mas o tema hoje é tango.
Se você, meu improvável leitor, é daqueles brasileiros que não gosta de argentinos, permita-me a reprimenda: não se deixe levar por esse tipo de sentimento pequeno e tacanho. Escute ao velho Goethe que dizia:

"O ódio nacionalista é sempre o mesmo, tem uma característica única. Você o vai
encontrar tanto mais forte e cego quanto mais baixo for o nível cultural. Mas existe
um nível em que ele desaparece totalmente, onde por assim dizer a pessoa paira de
tal maneira acima das nações, que as dores e alegrias de cada nação sente-se como
se fossem as da gente mesmo. É nesse nível cultural que eu me coloco por índole, e
nele eu me situava bem antes de completar meus 60 anos de idade”

Voltando ao tango e aos argentinos, me admirei muito deles. Os argentinos são capazes de se divertir muito sem emitir um único sorriso. Vejam os dançarinos de tango, passam a noite mantendo a fronte sempre franzida, os narizes empinados e com olhar de quem enxerga a tragédia de seu próprio abismo. E estranhamente estão se divertindo ao fazer isso. É um triunfar que não esquece das derrotas, é um culto sem transe, é achar beleza em meio às mazelas. Neste caso dou razão a eles, como disse Leminsky (e cantou Assupção), um homem com uma dor é muito mais elegante.
Há outra elegância ainda no tango, o suspense. Nunca se sabe se os dançarinos estão a ponto de lutar ou fazer amor. Também não podemos saber se os bandoneonistas tocam seus instrumentos por amor ou por raiva. Essa medida de mistério é na verdade uma forma argentina de charme. Fica tudo por um fio, ou por una cabeza como canta Gardel. Há uma medida que separa o veneno do remédio, é na fronteira entre as duas coisas que mora o tango e a alma dos argentinos.



M.U.C.C.

Ouro de tolo

Nesses poucos anos de profissão, de casado, de alguns títulos e alguma boa-fama na praça poderia ter me deixado sentir satisfeito, recompensado ou bem sucedido. Mais nesta tola armadilha eu não caio. Minto, é claro. Já cometi a bobagem de muitas vezes me sentir em posição de dizer ou em condições de exigir. Como diz a velha sabedoria, a carne é fraca. Não unicamente em assuntos de amor ou paixão, como se costuma pensar, mas também e principalmente em matéria de vaidade.
Se eu conquistei algum tesouro nesse meu pequeno feixe de anos são as coisas que levo na memória. Lá guardo meus filhos, minha esposa e mais algumas quinquilharias. Enquanto eu puder fechar os olhos e me lembrar de tudo o que me cativa, de todas as noites alegres, as tardes floridas, as boas idéias, as grandes peças musicais, as moças bonitas, os amigos queridos, ainda terei valor e dignidade. Enquanto eu puder dizer " estive ali", "como vai você", enquanto eu ainda souber rir de uma piada e fazer bem a mais alguns, me atreverei a me chamar humano. Depois ...


buenos aires, 19 de julho de 2011

M.U.C.C.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Diários Austrais: Um instante

Por um instante fui lúcido e só por um pouco não me fiz lúcifer. Por um instante fecundo me fiz valer à pena por mais algum tempo. Por um instante não fui fraude, farsa ou anedota. Por um saudoso momento deixei meus olhos verem e meus ouvidos ouvirem. E nesse espasmo do existir me chamei marcos e tudo tinha nome, lugar e resposta. E nesse século-instante chorei. Lamentei por mim e por todos, como na epifania do profeta, como no cair das quedas do Iguaçu. Insistentemente chorei como um quebrar-de-ondas, vivi um choro-faxina e pude até me sentir honesto. Depois passou. E tudo deixou de ser, como sempre. Saído deste lúcido transe vesti a  vida do sempre-igual, fez frio, turvidão e dúvida. As enguias do desencanto voltaram a nadar em minha banheira.


Buenos Aires, 19 de julho de 2011


M.U.C.C.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Diários Austrais: 9 de Julho

Não conseguiria chamar de cidade um lugar onde não pudesse ouvir o barulho dos ônibus. Desde pequeno dormia embalado pelos roncos de seus motores. O barulho provocado pelo alongar das marchas entrava lentamente nos meus sonhos e se perdia em um infinito de interioridades. Por isso me senti em casa em Buenos Aires. Suas ruas largas, as pessoas enformigadas, a visão que se enturva pelas muitas luzes me trouxeram conforto. Eu vivi boa parte da infância na zona rural, gosto do campo, do rústico, mas sempre em caráter transitório e propositalmente descontextualizado. Sou definitivamente um homo urbanus. Buenos Aires, e sua hipérbole a avenida 9 de Julho, me receberam calorosamente.



Já disseram que o espaço urbano é o espaço do feminino. Diria, para além, que as cidades são como mães das quais nunca abandonamos as tetas. Ou, em se tratando especificamente de cidades que conhecemos à passeio, que são como namoradas. Conhecemos, flertamos, nos familiarizamos, desfrutamos longamente para depois, tristes, vivermos um afastamento dolorido. Aqui em Buenos Aires me senti assim, tiro fotos vorazmente, encantado com suas belas curvas e reentrâncias. Deixo-me perder por suas longas alamedas e exploro suas galerias, maravilhado por sua beleza e novidade.



Sonho um dia poder encontrar uma cidade com a qual eu possa me casar e só a ela me entregarei. Ou não. Por hoje penso em Buenos Aires com desejo e lembro ternamente da minha humilde mãe, Londrina.




Buenos Aires, 19 de julho de 2011

M.U.C.C.

domingo, 24 de julho de 2011

Diários Austrais: Dia 2


Uchuaia, se diz Ussuaia, é uma cidade fria. Não só por ser a mais austral do mundo, mas porque o frio aqui é um protagonista polissêmico. Pode se sentir o frio em várias dimensões e significados. Uchuaia foi criada para ser uma prisão do governo porteño ainda nos primórdios do século passado. Na pequena e gélida ilha argentina,  o governo queria erigir uma alcatraz, um Gulag, uma Austrália dos primórdios coloniais. O folclore que a cidade hoje alimenta em torno  da antiga prisão, por necessidades turísticas, dá ao frio a dimensão da ausência.
A ausência dos bandidos, dos presos políticos e das árvores que cortavam. Não é o caso de transformar condenados da justiça em heróis ou vítimas, coisa que anda já à algum tempo na moda. Mas deve-se notar com desconforto que aqueles condenados são hoje produto de consumo, seus pijamas podem ser comprados em lojas, a prisão virou museu e o trem por onde chegavam é ponto turístico, lindíssimo aliás. Há em Uchuaia o frio da ausência desses desgraçados civis que têm sua memória hoje invertida. Os indesejáveis são hoje vendidos e negociados para salvar a pele dos comerciantes.
Há também o frio da ausência dos índios que batizaram a cidade, estão em estátuas de cera, fotos e ilustrações, mas já não existem. Os guias engasgam quando perguntados sobre isso, "mas e os índios?" Suas respostas são mais vazias que o de costume. Este é um silêncio aliás que ecoa por toda a Argentina, para onde foram os índios? Suas palavras batizaram bahias e aldeias que já não podem usufruir. Não falo em nome deles, não acho que tenha o que ser reparado, mas também o uso mercadológico atual é um pouco desconfortável. Não quero parecer dramático demais, mas me sinto na obrigação de fazer este juízo histórico.

Contudo confesso que frio mesmo senti dentro de mim mesmo. Gelei como o frio-de-barriga em montanha-russa. Senti o frio do susto. É o susto de se sentir migalha frente as gelerais, os picos andinos e o imenso. O susto mediante as chacoalhadas do avião. De repente lembrei-me quem sou, a natureza me esbofeteava com sua grandeza. Este foi o verdadeiro e eloquente frio de Uchuaia, notar-se pouco e insuficiente. Notar-se em seu tamanho natural e verdadeiro. Ser migalha pelas saudades e pelos limites.



 Uchuaia 15 de julho

M.U.C.C.