terça-feira, 29 de novembro de 2011

Marcos: o projeto.

Quero morrer para mim como projeto. Uma das minhas brincadeiras prediletas quando pequeno era me imaginar mais velho. Passava horas vivendo situações futuras, tive várias profissões, viajei, fui campeão em olimpíadas e mundiais, me casei com a menina da classe e tivemos filhos. Eu era como um personagem de um romance ainda não escrito. Gostava de pensar como diferentes opções me levariam para cenários específicos e como ao mudar as escolhas mudaria também o desfecho.
Talvez nunca tenha parado com essa brincadeira. Eu quase sempre me vejo como um personagem do futuro, eu sempre serei, ou estarei, ou realizarei. Ao longo dos anos as coisas vieram a ser e estar e não deixaram de ser realizadas, mas eu acabo fazendo tudo como quem come a ceia pensando na sobremesa. Vou vivendo como quem espera. Devemos sonhar? Planejar e desejar sermos mais e melhor? Talvez sim, mas há um perigo.
Bem antes do castigo de minha mãe eu já sabia que devia ser castigado, podia até tentar escapar ao castigo, mas no fundo sabia que ele era meu. Há algo em nós que nos auto-avalia constantemente, que nos julga e nos faz ter sentimentos importantes como culpa e arrependimento, justiça e compaixão. A questão porém não é quem é este que me julga dentro de mim mesmo, mas quem ele está julgando? Criamos uma imagem própria e sobre ela emitimos juízos.
O perigo mora aí. Não posso julgar meus atos de hoje pensando no Marcos de amanhã. Não posso julgar os atos de meu grupo pensando no que ele será. Os meus fins não podem justificar meus meios, se me permitem o clichê retrô. Portanto preciso urgentemente me reconciliar com meu eu verdadeiro, que morra o Marcos-projeto, que eu seja só eu mesmo para mim. E você?


M.U.C.C.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O sal da saudade

trago um gole amargo de ar
talvez de mar
talvez não amargo, mas salgado
salgado de saudade
palavra lusitana
lembrança quase má,
quase insana
saudade dos marinheiros perdidos
saudades de camões
e de índias deixadas pra sempre.





M.U.C.C.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O meu milagre da multiplicação

De tudo o que eu já estudei sobre educação, de todas as aulas de tantos historiadores, pedagogos, historiadores da pedagogia, psicopedagogos e sociólogos e sociólogos da pedagogia e todas as outras possíveis combinações entre essas palavras, restou-me a seguinte frase, não existe ensino, existe aprendizagem.
De todos os alunos que eu tive os que melhor aprenderem o que eu lhes falava, os que melhor souberam usar os conceitos, reconstruir narrativas históricas, analisar conjunturas, julgar situações-problema, me deixaram sempre com a sensação de que aprendiam sozinhos. Não que eu não tenha contribuído, mas porque talvez nada se possa ensinar verdadeiramente. Para dizer que alguém aprendeu algo é preciso que ele tome esse conhecimento das mãos de seu professor, é preciso que em algum instante aconteça um milagre, uma epifania, a tradição filosófica chamaria de intuição intelectual. Descartes dizia que essa era a assinatura divina em nossas almas.
Minha filha é uma aluna aplicada, pelo menos até agora, e faz suas tarefas com muita diligência. Muitas vezes me falta paciência e ânimo para lhe ensinar, mas ela merece toda a minha paciência e capacidade pedagógica. Hoje porém tive todas as penosas horas recompensadas ao vê-la aprender a multiplicar números, de novo não foi eu que ensinei, mas ela que olhou diferente para aqueles números em um dado momento. Dou aulas para turmas grandes, por vezes não dou conta de aprender o nome de todos os alunos, mas mesmo assim sei quando eles estão aprendendo. É sempre tão recompensador como foi com minha filha.
Há momentos dentro de uma sala de aula, em que todos param de fazer outras coisas, de falar com seus amigos, de mandar mensagens no celular e passam a olhar atentamente para o que você esta dizendo. Seus olhares mudam e parece haver uma aura diferente sobre a sala. Nessa hora minha boca se enche de palavras, há o que  Feuerstein chamaria de reciprocidade, sinto-me quase possuído por algo maior. Todo o cansaço se paga nesses momentos, minhas dúvidas sobre minha escolha profissional somem, sou feliz.
Aprender como nós humanos aprendemos, saber intuir coisas que nem as palavras dos maiores poetas podem expressar, saber o que é saudade, saber como ler um soneto, resolver um enigma, são coisas tão mágicas e tão simples. Essas são daquelas poucas coisas que chamamos de milagre.




M.U.C.C.

sábado, 5 de novembro de 2011

Vôo Livre

É raro, mas vez ou outra sinto a vida como uma grande queda-livre. O chão tira o corpo fora, não há caules ou raízes em que se possa segurar. Tudo não é mais que um tapa na cara.  Só nessas horas é que conheço a solidão, a solidão da queda-livre. Das pessoas restaram as vozes zombeteiras, me acusam, riem-se. Não levo magoa, o que mais eu queria? O que mais eu poderia chamar de liberdade? Nada mais me prende e por isso caio. Liberdade talvez seja um nome de guerra da queda. Minha alma chega a tocar o céu da boca, sinto náusea de mim mesmo. E tudo é insuportavelmente banal como a gota d'água do chuveiro, cai e explode no ralo como um sem número de outras. Não resta nem a vanglória da excepcionalidade, sou só o fruto necessário da gravidade das coisas. Pensei que seria poeta, pensei que seria um abutre negro pastando almas daninhas, mas sou só queda. Restou-me o grito destas linhas, de horror e medo ao ver-me no espelho, ao ver a queda, ao respirar o nada, ao não saber o que mais devo fazer com os pés. Só restou as palavras. Mas hoje em dia elas não valem nada.



M.U.C.C.