Eram belas as amanhãs daquele inverno, como costumam ser as manhãs desta estação. Um enorme mar azul-quase-caribe tornara-se céu sem nuvens ou sol. Branca como porcelana fina com textura de papel de arroz a neve fazia as vezes de praia, vindo morrer nela o infindo mar daquele céu mudo e plácido. As montanhas replicaram este mesmo cenário por léguas de perder da vista. Não sei bem porque foi que a primeira lâmina de neve se desacomodou acumulando-se sobre uma próxima. Ainda faltava-lhe os terríveis ruídos, os tremores, o volume, o peso. Faltava-lhe tempo de perseguir seu destino, faltava-lhe história, mas já nascera avalanche. Já pedia passagem, já tinha um caminho. Mesmo a manhã parecendo serena e repleta do sempre igual, havia dentro dela um cataclismo.
De finíssimas lâminas de neve fez-se aquilo que de tão grande já nem cabe adjetivar, de pequenas repetições cotidianas, de pequenas frases soltas, de pequenos diálogos inconclusos. De pequenas coisas que aparentam insignificância revela-se o significado. Este já habitava, ainda que imperceptivelmente, aquela primeira centelha de quase nada. Quem poderá apontar seu início, quem poderá prever seu instante de irreversibilidade? Quem poderia sem incorrer em mentira assumir-se como criador? Para qual finalidade existem? Certo é que destroem. E que são incontroláveis, irreversíveis. Certo é que do mesmo modo incerto como se dá seu nascimento, tão incerto também é seu momento de parar.
E de quantas avalanches se constrói uma existência?
M.U.C.C.