Sob a órbita dos teus olhos


CAPÍTULO 1

O ônibus tomba sequencialmente, pendulante. Posso vez ou outra ver a estrada pelo vão de vista que tenho de minha poltrona. O sol, já de saída, atrapalha minha visão, mas mesmo assim estou aflito. Sei que a estrada é estreita e sinuosa, não confio nestes motoristas de hoje em dia trabalham muito e dormem pouco. Noto que há outros passageiros com as mesmas aflições, outros estranhamente dormem. Não posso entender essas pessoas que dormem em viagem. Como podem entregar-se assim  ao destino, como podem entregar a chave da alma ao motorista, ao motor, as engrenagens? Eu convulsiono discretamente, de quantos detalhes dependem minha vida? E se na próxima curva uma vaca cruzar a estrada? E se um pneu estourar? E se não houver mais estrada? É difícil para mim subir em um ônibus.
Calcule, se é que alguém me escuta, quão desafortunada me foi a sorte ao delegar por atividade profissional a de cobrador de ônibus. Trabalho em uma linha intermunicipal em que os passageiros entram e saem constantemente, muitos acenam para o motorista da beira da estrada, e por isso, as passagens são vendidas aqui mesmo dentro do ônibus. Trabalho aqui à cinco anos, cinco carnavais de puro medo e angústia. O que de tão importante as pessoas tem para fazer em outra cidade que lhes permita correr esse risco todo? Será caso de vida ou morte? Não sabem eles como tudo pode a todo momento dar errado? Cada gota de suor que verte minha nuca vem de minha consciência, nada que funciona funcionará para sempre. Quanto mais viagens faço sem acidentes, mas reduz a probabilidade deles não acontecerem. Se alguém passou a vida toda sem sofrer um acidente automobilístico foi por que não viveu o suficiente ou não viajou o suficiente.
Não tenha tenha dó de mim por trabalhar em um ofício que me causa pânico, pois existem ainda outros motivos maiores para seu compadecimento. Como cobrador, sou obrigado a andar por entre as poltronas durante as viagens e abordar cada novo passageiro solicitando evidentemente que pague o serviço que utiliza. Isso me faz olhar para os passageiros no olho, tenho também de conferir seus documentos, receber o dinheiro e devolver o troco caso necessário. Só que as pessoas são muito interessantes. Não resisto à elas. Fico tomado de inquietação, desejo saber o motivo da viagem, quem são seus grandes amigos, o que lhes dá prazer e o que lhes entristece. Mas não posso em hipótese nenhuma fazer isso, todos sabem que um grande cobrador não entra na privacidade de seus passageiros. É uma questão de postura profissional, devo estar à altura de meu cargo.
Esse interesse, contudo, é maior do que eu, não posso passar indiferente a todas aquelas pessoas tão criativamente diferentes. Passo o tempo que posso em pé, mesmo correndo todos os incalculáveis riscos, para ver mais de perto meus passageiros. Quando realmente acabo meu serviço, então sento-me em minha poltrona, ligeiramente mais elevada que a dos demais viajantes, e os observo. Esse tempo em que estou sentado é o de maior angústia, penso mais no ônibus, nos perigos e que em breve não verei mais aquelas pessoas tão fantásticas. Confesso que não são todos que me interessam, às vezes de tão lotado o ônibus não consigo dedicar a mesma atenção a todos. Mas há sempre alguém que parece ter uma grande história guardada dentro de si, há sempre alguém que parece fora de lugar, alguém que parece dizer um monólogo com os olhos.
Noto que chegamos à cidade, posso perceber pela fresta a padaria amarela, aquela igreja do pastor que berra, a rodoviária não está longe. Pronto fim da angústia, pensou você? Não esta é a pior hora. Terminada a viagem respiro fundo, só por hoje não morri nessas estradas, penso. Mas fica o vazio de ver aquela moça de cabelos cacheados discretamente se despedir e ir embora para sempre, aquela senhora que passou a viagem toda abarrotando de comida os netos, passar por mim indiferente, ou um senhor introspectivo vestido à moda antiga que elegantemente levanta o chapéu ao passar por mim. Para onde vão todos? Eu fico sempre no caminho. Alguns que viajam acompanhados até deixam pistas nas conversas que, por acidente, escuto. Mas não basta, gostaria de ser eu também passageiro e sair dali para o novo, o diferente, a cidade que se revela, gostaria de ter aquele olhar de curiosidade que tem ao sair do ônibus. Olham para as paredes, para as lojas, para as pessoas com um frescor, com um sentido de novidade, que sou incapaz de ter.
Só há uma coisa capaz de me fazer esquecer tudo aquilo, só há um momento em que posso ser leve e voar acima do concreto. Quando lembro daqueles olhos verdes. Tudo se verdeja ao meu redor, talvez nem haja redor nestes momentos, tudo se esvai em uma calma correnteza que me carrega para longe. Qual seu nome? Juro que não me lembro, devo ter visto a identidade, mas minha memória não foi capaz de guardar letras. Só restaram seus olhos. São sem sombra de dúvida o metro quadrado mais caro de minha memória, preferiria esquecer meu nome há não lembrar de seus verdes olhos. As minhas memórias gravitam ao seu redor. Foi um dia glorioso quando ela entrou naquele ônibus empoeirado, será que volto a vê-la? Essa é a pergunta que não me deixa mudar de emprego.

CAPÍTULO 2

Há uma pedra em Machu Picchu onde os povos quéchuas acreditavam ser o lugar no qual o sol fora amarrado. É como se houvesse uma corda cósmica presa neste lugar e no sol, como se ali fosse o ponto central da terra. Tudo giraria ao redor dessa pedra. Os quéchuas consideravam o sol como a maior de todas as divindades, o chamavam de Inti e acreditavam ser o imperador, Inca, a sua encarnação. Podemos pensar que se o imperador era, para fazer inveja a Louis XIV, o próprio sol, toda a sociedade, a burocracia, os rituais religiosos, o exército, o sistema tributário, em suma tudo dependia do grande astro e por consequência lógica, da pedra. Fico pensando como um dia ensolarado ou um dia nublado era sentido de modo totalmente diferente por eles. Penso ainda mais sobre esta pedra. Por que uma pedra? Por que não uma montanha? Uma pedra parece pouco para o astro-rei, imperador neste caso.
Todos precisam de um centro. Todos precisam de uma pedra para amarrar o sol. Todos construímos um totem ao qual nos ancoramos e giramos ao seu redor. O giro é vacilante, ora tensiona a corda cósmica quase ao ponto de estourar, ora quase para, nestas horas boia-se ao redor do centro. Não pense leitor que me vendi ao desatino ou que lhe ocupo os olhos em vão. Falo disso pois se não a história acaba, não há outra estrada pela qual possamos passar. O sol-totem de todos nós não são valores, crenças, convicções de foro íntimo, não são caraminholas da cabeça de quem pensa desmesuradamente. Nos prendemos ao concreto, falo portanto de matéria clara e objetiva. O sagrado sol dos quéchuas talvez lhes fosse substância que de tão longínqua tendesse mais à abstração do que à realidade, mas a pedra não. A pedra é áspera, gelada ou quente, tem peso e logradouro. Sob o peso desta lasca de montanha, escultura do tempo, feita de sal, de sol, de chuva os incas se apoiaram. Não se deixaram levar pelo brilho do ouro nem pela elegância da prata fizeram nascer um centro de uma pedra ordinária.
Assim penso sobre mim. Por trás de meu uniforme de ofício, que me guarda como a concha do caramujo, vive uma certa quantidade de coisas que busca uma pedra como a dos incas para lhe dar forma e congruência. De uma manga fiapenta faz-se cheiro, gosto e textura, de seu sumo escorrendo pelo braço, de sua carne que se espalha pelos vãos dos dedos sente-se a doçura da vida. Se pode ver que é bom. Ainda pequeno tive uma cadela que deu cria, eram seis filhotes. Os vi brincar, rolar pela grama, mordiam-se afetuosamente. Penso que foram aqueles cachorros que fizeram a criança que eu era virar moleque. Passar a mão em seus pelos me fez sentir-me mamífero, tive vontade de brincar, correr, rir, como eles. São as coisas que nos prendem ao sol. De uma pedra fez-se o Império.
Eu fui matéria informe até o dia em que vi aqueles olhos verdes. Eles são a rocha que dá ao sol referência. Parece pequeno? Exagero? Lembre-se da pedra dos Incas. Nada me foi mais real, nada pode acontecer tão concretamente com aqueles verdes olhos. De onde vieram? Será que ia ou voltava? Será que voltou no turno de outro cobrador? Ou o contrário? Nada garante que um dia volte a vê-los, não há como esperar que isso aconteça. Mas se em algum lugar devo esperar pelo sorriso do acaso é neste meu terrível ônibus de todo dia. Se ela foi ou veio, pode voltar ou tornar a ir. Se eu sair pelo imenso da cidade não encontraria nunca, se fosse à outro ponta da linha deste veículo pouco governável também lançaría-me ao enfado e ao improvável.
Faço votos de que finde esse desterro. Não que a simples memória daqueles olhos já não seja suave alento, não que não a veja em cada esquina e em cada rosto, não que seus olhos não se acendam como faróis quando os meus estão fechados, mas como disse ainda à pouco, de matéria concreta se faz o totem. Deve ter volume e dimensão, deve ser como a manga ou os filhotes da cadela, tangível. No exercício deste desterro só existo como memória, só me faço como lembrança. Só há prumo, norte e sentido quando vivo o mundo do sonho.

CAPÍTULO 3

O que fiz para merecer esses meus olhos verdes? Escondem-me atrás deles. Ora, eles, bonitos ou não, estão totalmente alheios aos meus talentos e predicados pessoais. Acaso se amanhã um pequeno derrame acometer o meu globo ocular e meus olhos forem tomados de púrpura feiúra, serei menos eu do que era? Se uma terrível catarata manchasse de branco toda minha vista seria pior do que ora sou? Qual é meu grande mérito em ter belos olhos? Ninguém é capaz de me ver sem antes vê-los. Sou refém deles. Talvez por isso tenho aversão a tudo que é excepcionalmente belo. Devíamos nos devotar ao ordinário não extraordinário. Quantos alunos  geniais não impediram os professores de perceber seus demais alunos? Quantas pessoas se iludem em seus destinos deixando-se guiar pela exceção ao invés da regra. Quanto tempo perdemos procurando nos recuperar de grandes erros quando são os pequenos e cotidianos que mais nos destroem. São as pequenas rachaduras que levam as barragens à ruir. Quem só tem olhos para o excepcional não é capaz de perceber a grandeza do ordinário. Não olho as flores, gosto dos caules, de seus caroços e das suas folhas verdes sem cheiro.
Talvez tenha sido isso e meus olhos verdes que me levaram a cursar medicina. Nada é mais óbvio que a vida. Vivemos a vida toda sem nos dar conta disso. Pensamos muito em nossas memórias, nostalgicamente suspiramos, somos capazes de chorar por pensar no envelhecimento, na decadência, mas quase nunca nos dedicamos a pensar a vida por si mesma. A vida nua de valores, sentimentos, atitudes, a vida como experiência em si é algo tão absurdamente incrível que somos quase incapazes de percebê-la. Um dos poucos momentos em que chegamos perto de ver a vida como experiência radicalmente centrada em si é quando alguém morre ou quando passamos perto da morte. Um feixe de consciência parece momentaniamente se apoderar de nossas cabeças perturbadas, percebemos em um relance que estamos vivos. Mas isso logo passa e a vida volta a seu secundarismo.
Sou médica para tentar não ser assim. Trabalho na emergência, pessoas morrem todos os dias. Remédio amargo que tomo para não ser refém do tédio que acomete a maioria. Aborrece-me muito quando noto o verdadeiro enfado que as pessoas tem em si mesmas, o tédio de ser. A vida é uma coincidência numericamente tão improvável que penso ser absurda a hipótese de não tomá-la por milagre. Levo um choque quando vejo um corpo que não está mais vivo, corre uma fria corrente de responsabilidade por mim quando isso acontece. Tenho o dever de saber que estou viva. Por isso devo a vida e a sua beleza.
A vida é como uma orquestra que toca de ouvido. É uma benigna conspiração. Se pensarmos na quantidade de coisas que nos poderia matar agora mesmo, uma mudança de pressão, de temperatura, a glicose do sangue, o ataque de uma terrível bactéria ou um vírus. A medicina atual passa a falsa mensagem de que não corremos riscos, de que há solução e tratamento sempre. Tira assim o significado da morte e banaliza ainda mais a vida.
A beleza oculta-se, espreita-se por trás da vida. Morre-se um pouco quando perdemos a capacidade de percebê-la. Chegando ao hospital hoje pela manhã, um paciente estendeu a mão em saudação. Apertei sua mão, ainda me desvencilhando de minha bolsa. Era quente, viva. Olhei aquele gesto enquanto se consumava. Prometo solenemente jamais tratar um aperto de mão como um aperto de mão. São dois movimentos complexos simultaneamente executados por dois serem igualmente complexos que ternamente decidem se adaptar um ao outro. Encaixam-se, acomodam-se e brevemente são felizes. A experiência do aperto de mão foi tão forte que me fez por alguns segundos esquecer da cansativa viagem de ônibus que tinha acabado de enfrentar. Meu carro quebrou ontem à noite, hoje tive de vir de ônibus. A viagem não é longa, mas ônibus é quente, barulheito, chacoalha sem parar, para constantemente e está em péssimo estado de conservação.

CAPÍTULO 4

Não vou tratar minha morte com tom de excepcionalidade. Ela era esperada, mais que provável, questão de tempo. Aliás já sabia disso desde o primeiro capítulo. Esse ônibus nunca me enganou, é complexo demais para sempre dar certo. A curva pareceu hoje menor e mais aguda, não houve tempo para mais nada. Curioso, já amanheci sabendo que morreria, mas não dei trela à intuição. Joguei-a para os lombos qual mochila, sorvi o cheiro do trabalho, abotoei a camisa e corri para encontrar meu destino pela última vez. Mais curioso ainda é viver este momento agora, estou quase morto, mas ainda um pouco vivo. Me acostumei a  pensar que a vida fosse como um interruptor, ou se está vivo ou se está morto, mas agora me parece como um botão desses de mesa de som que vai abaixando a música bem lentamente. Na verdade, exatamente por perceber esse elegante fechar de cortinas estou bastante conformado agora. Tem pessoas cujos botões começam a baixar ainda quando se parece vivo, passam anos tendo seus botões abaixados. Meu botão desce em uma cadência boa, posso me dizer quase satisfeito.
Também não vou falar sobre o sentido da vida ou sobre o filminho que passa na mente quando se está morrendo. Sim, passa um filminho. Mas há outras coisas mais importantes. Esse instante na fronteira entre o vivo e o morto, entre o ser ou não é totalmente diferente de tudo o que já vivi. Estou sentindo uma saudade louca da vida. Sinto meu coração batendo emocionado como um corredor a poucos metros da chegada. Ele parece rir, estende os braços e aos poucos desacelera-se, não suporta mais tanto trabalho. Sinto o sangue ainda quente, nunca soube demonstrar gratidão pelo aconchego trazido em minhas veias e artérias, esse calor gostoso da vida sempre passou batido. Afago as próprias mãos. Quando estamos vivos somos quase incapazes de sermos carinhosos conosco.
Despeço-me de meu corpo com tanta intensidade que quase nem me dei conta do que acontecia em meu entorno. Chamaram uma equipe médica. Não os esperava, honestamente. Não espero sobreviver. Parecem me tocar, quase posso ouvi-los. Meu botão dá mais uma abaixada, tudo está mais lento. Acho que cheguei definitivamente aos portões da morte, minha mente deve estar em pane, vocês acreditariam se eu dissesse estar vendo aqueles maravilhosos olhos verdes? Estão nitidamente em minha frente, não sei se me alegro como deseja tudo o que ainda respira dentro de minhas fronteiras, ou se me entristeço por entender nisto um sinal de desligamento com a realidade. Entrego-me a miragem e vou com ela para sempre ou fico até quando puder no território da existência material? E se não for miragem? E se eu já estiver morto, privaria-me de gozar o paraíso?
Como posso ter me agarrado por tanto tempo, anos até, a essas duas esmeraldas que se deixaram incrustar em tão branca e sedosa tez? São belas, muito belas, eu sei, mas são apenas esmeraldas. Um dia foram lembrança de uma bela e jovem mulher, mas o tempo e a memória acabaram por me deixar só os seus olhos. Neles me agarrei e estou agarrado até agora, tenho medo de soltar e descobrir que eram a única coisa que me mantinha vivo. Minha intuição que de mim não se desprendeu mesmo depois do acidente mandou dizer que agora eu sou estes olhos verdes. Acreditei. Sorri. Me segurei para não gargalhar. Vejo bem os olhos verdes agora, parecem aflitos. Não me dei o direito de ver mais nada, só vejo o verde. Morrer para mim foi verde.