Ela põe as mãos entre as pernas e ergue levemente os ombros, toma o ar com força e tem um semblante penitente. Depois o café e um bolo se houver. Faz do gesto um ritual, como quem traça a cruz na fronte ou se ajoelha em reverência. Lança o instante no infinito, se deixa atravessar pelo passado, repete o gesto de gerações. Nunca morou no campo, nunca cingiu o peito da lida, mas traz num movimento a memória corpórea de um Brasil que quase não mais existe.
M.U.C.C.
blog dedicado à publicação despretensiosa e despreocupada de pequenos textos, comentários e pitacos em geral.
terça-feira, 31 de maio de 2011
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Coisas de Criança
Fiquei um tempo sem escrever no blog. Culpa da minha cadeira que quebrou, devia ter escutado a vendedora da Giroflex. Para usar o computador tenho que sentar num banquinho e, convenhamos, quem pode alimentar um blog sentado num banquinho? Pior para o meu filho, que perdeu a poltrona do seu quarto para que agora eu possa voltar a escrever. Ele não usa mesmo. Dito isto, vamos ao que interessa.
As nossas memórias de infância são como o tema inicial de uma sinfonia. A vida passa, os músicos viram as páginas das partituras, novos timbres aparecem, a orquestra cruza vales e montanhas, mas há sempre o reencontro com o tema inicial. Ele ressurge transformado, mas volta. Envolto em longos feixes de estranheza e desencontro brotam familiaridades, cheiro de chuva, cheiro de pão, o gosto do doce ou o barulho do carro. Lembro-me deitado em minha cama à noite sem conseguir dormir, posso ainda ver a luz que entrava por pequenas frestas da janela e os formatos estranhos que surgiam na parede. Lembro de fazer orações, lembro de falar longas frases com palavras que não existem, lembro que nessa época eu torcia para o dia nascer logo. Hoje torço para o outro time.
Mas para que servem essas memórias? Não servem, por isso valem tanto. Elas estão em nós antes de nós mesmos, nós nos fizemos delas. Antes que pudéssemos buscar por serventias para vida, elas já eram. Não se trata de usá-las para terapias, não se trata de darmos utilidades, nem de organizá-las cronologicamente. Delas nascem os cheiros, delas nascem as cores, texturas, sentimentos. Encontro-me com elas quase como se fossem reminiscências platônicas. Desse tema inicial vem o pulso que percorre toda a sinfonia, ao redor desse pequeno conjunto de notas singularmente organizadas gravitam todas as outras. O cheiro do arroz da minha vó, a gemada da outra, a voz da minha mãe me chamando de manhã, o sorriso do meu pai.
Mas sabe, digo agora mais discretamente olhando por cima das lentes dos óculos, o que me pôs a tecer essas poucas linhas foi um encontro com uma dessas lembranças. Lembro-me de uma manhã de Natal. Muda, totalmente muda, as conversas eram todas de adulto. Eles deviam estar sintonizados em outra frequência, não pude ouvi-los apesar de lembrar dos lábios se mexendo. Franziam as testas, pendiam com o corpo para trás, coçavam a cabeça, tinham todos uma feição grave e solene. Lembro-me de outro que permaneceu estático, braços cruzados, cara de mau, enfrentando tudo com as costas. Neste dia aprendi que existem coisas de adulto. Penso que minha infância começou a morrer ali. Foi um pouco como Adão e Eva saindo do paraíso, de Caravan. O que aconteceu? Prefiro dizer que não sei, são coisas de adulto.
Com o tempo vai se aprendendo a sintonizar a rádio dos adultos e muitas vezes já tive de ligar nesta estação. Papo de adulto é como final de campeonato, um pouco antes de começar a orquestra muda o andamento. Nessas horas o um canhão de luz se ascende sobre sua cabeça e o técnico vai abaixando levemente as outras luzes. Para mim é sempre como viver aquela manhã de Natal, perde-se um pouco mais a inocência, percebe-se a própria nudez, sinto-me um pouco mais distante daquele jardim idílico original. Por isso quis escrever hoje, para ver se acho de novo a rádio das crianças.
M.U.C.C.
As nossas memórias de infância são como o tema inicial de uma sinfonia. A vida passa, os músicos viram as páginas das partituras, novos timbres aparecem, a orquestra cruza vales e montanhas, mas há sempre o reencontro com o tema inicial. Ele ressurge transformado, mas volta. Envolto em longos feixes de estranheza e desencontro brotam familiaridades, cheiro de chuva, cheiro de pão, o gosto do doce ou o barulho do carro. Lembro-me deitado em minha cama à noite sem conseguir dormir, posso ainda ver a luz que entrava por pequenas frestas da janela e os formatos estranhos que surgiam na parede. Lembro de fazer orações, lembro de falar longas frases com palavras que não existem, lembro que nessa época eu torcia para o dia nascer logo. Hoje torço para o outro time.
Mas para que servem essas memórias? Não servem, por isso valem tanto. Elas estão em nós antes de nós mesmos, nós nos fizemos delas. Antes que pudéssemos buscar por serventias para vida, elas já eram. Não se trata de usá-las para terapias, não se trata de darmos utilidades, nem de organizá-las cronologicamente. Delas nascem os cheiros, delas nascem as cores, texturas, sentimentos. Encontro-me com elas quase como se fossem reminiscências platônicas. Desse tema inicial vem o pulso que percorre toda a sinfonia, ao redor desse pequeno conjunto de notas singularmente organizadas gravitam todas as outras. O cheiro do arroz da minha vó, a gemada da outra, a voz da minha mãe me chamando de manhã, o sorriso do meu pai.
Mas sabe, digo agora mais discretamente olhando por cima das lentes dos óculos, o que me pôs a tecer essas poucas linhas foi um encontro com uma dessas lembranças. Lembro-me de uma manhã de Natal. Muda, totalmente muda, as conversas eram todas de adulto. Eles deviam estar sintonizados em outra frequência, não pude ouvi-los apesar de lembrar dos lábios se mexendo. Franziam as testas, pendiam com o corpo para trás, coçavam a cabeça, tinham todos uma feição grave e solene. Lembro-me de outro que permaneceu estático, braços cruzados, cara de mau, enfrentando tudo com as costas. Neste dia aprendi que existem coisas de adulto. Penso que minha infância começou a morrer ali. Foi um pouco como Adão e Eva saindo do paraíso, de Caravan. O que aconteceu? Prefiro dizer que não sei, são coisas de adulto.
Com o tempo vai se aprendendo a sintonizar a rádio dos adultos e muitas vezes já tive de ligar nesta estação. Papo de adulto é como final de campeonato, um pouco antes de começar a orquestra muda o andamento. Nessas horas o um canhão de luz se ascende sobre sua cabeça e o técnico vai abaixando levemente as outras luzes. Para mim é sempre como viver aquela manhã de Natal, perde-se um pouco mais a inocência, percebe-se a própria nudez, sinto-me um pouco mais distante daquele jardim idílico original. Por isso quis escrever hoje, para ver se acho de novo a rádio das crianças.
M.U.C.C.
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