blog dedicado à publicação despretensiosa e despreocupada de pequenos textos, comentários e pitacos em geral.
domingo, 24 de julho de 2011
Diários Austrais: Dia 2
Uchuaia, se diz Ussuaia, é uma cidade fria. Não só por ser a mais austral do mundo, mas porque o frio aqui é um protagonista polissêmico. Pode se sentir o frio em várias dimensões e significados. Uchuaia foi criada para ser uma prisão do governo porteño ainda nos primórdios do século passado. Na pequena e gélida ilha argentina, o governo queria erigir uma alcatraz, um Gulag, uma Austrália dos primórdios coloniais. O folclore que a cidade hoje alimenta em torno da antiga prisão, por necessidades turísticas, dá ao frio a dimensão da ausência.
A ausência dos bandidos, dos presos políticos e das árvores que cortavam. Não é o caso de transformar condenados da justiça em heróis ou vítimas, coisa que anda já à algum tempo na moda. Mas deve-se notar com desconforto que aqueles condenados são hoje produto de consumo, seus pijamas podem ser comprados em lojas, a prisão virou museu e o trem por onde chegavam é ponto turístico, lindíssimo aliás. Há em Uchuaia o frio da ausência desses desgraçados civis que têm sua memória hoje invertida. Os indesejáveis são hoje vendidos e negociados para salvar a pele dos comerciantes.
Há também o frio da ausência dos índios que batizaram a cidade, estão em estátuas de cera, fotos e ilustrações, mas já não existem. Os guias engasgam quando perguntados sobre isso, "mas e os índios?" Suas respostas são mais vazias que o de costume. Este é um silêncio aliás que ecoa por toda a Argentina, para onde foram os índios? Suas palavras batizaram bahias e aldeias que já não podem usufruir. Não falo em nome deles, não acho que tenha o que ser reparado, mas também o uso mercadológico atual é um pouco desconfortável. Não quero parecer dramático demais, mas me sinto na obrigação de fazer este juízo histórico.
Contudo confesso que frio mesmo senti dentro de mim mesmo. Gelei como o frio-de-barriga em montanha-russa. Senti o frio do susto. É o susto de se sentir migalha frente as gelerais, os picos andinos e o imenso. O susto mediante as chacoalhadas do avião. De repente lembrei-me quem sou, a natureza me esbofeteava com sua grandeza. Este foi o verdadeiro e eloquente frio de Uchuaia, notar-se pouco e insuficiente. Notar-se em seu tamanho natural e verdadeiro. Ser migalha pelas saudades e pelos limites.
Uchuaia 15 de julho
M.U.C.C.
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2 comentários:
Demais professor ! Incrível como vc conseguiu repassar tudo oque vimos ,aprendemos,sentimos...como todos seus textos,este ficou muito bom tambem!!Continue escrevendo ! Bjss maite r.
obrigadazzo maitê, tenho outros para postar, acompanhe!
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